TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 84.º Volume \ 2012

386 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL traduz a verdade. A desconformidade há de resultar, em princípio, de uma desconformidade entre o docu- mento e a declaração. Se o documento está de harmonia com a declaração, mas no entanto esta não está de harmonia com a realidade, não pode haver falsidade intelectual (…)». Beleza dos Santos também admitia a distinção, mas acabava por remeter para a norma (artigo 38.º, § único) reguladora do concurso aparente de infrações (“Falsificação de documentos e falsas declarações à autoridade”, in Revista de Legislação e de Juris- prudência , ano 70.º, p. 257). Em face da dificuldade da distinção, não pode dizer-se que a jurisprudência emitida na vigência do Código Penal de 1886 tenha seguido um critério uniforme de aplicação. Assim, enquanto que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de outubro de 1969 ( Boletim do Ministério da Justiça , 190. º, p. 239) pareceu adotar um critério idêntico ao proposto por Maia Gonçalves, ao decidir que «se o documento está de harmonia com a declaração, não existe falsidade (…)», já o acórdão de 24 de janeiro de 1968, do mesmo Supremo Tribunal ( Boletim do Ministério da Justiça , 173. º, p. 179) dele se afastou, ao deixar lavrado: «Veri- fica-se o crime de falsificação de documento, na forma de falsificação intelectual, previsto no artigo 216.º do Código Penal, quando, com intenção de prejudicar, se fazem declarações falsas para serem exaradas em documento autêntico, sobre pontos que o mesmo tem por fim certificar ou autenticar». Quanto à conexão destas previsões genéricas com o crime específico de falsas declarações em proce- dimento de justificação notarial, os antecedentes legislativos em nada contribuem para esclarecer a dúvida acima exposta, antes a adensam significativamente. Aquele procedimento foi criado pelo artigo 27.º da Lei n.º 2049, de 6 de agosto de 1951, para permitir a inscrição de direitos no registo predial, por parte de quem, invocando-os, não pudesse deles fazer prova por documento bastante. Tal procedimento traduzia-se numa “ declaração do proprietário, prestada sob juramento e confirmada por três testemunhas idóneas”, prestada perante a entidade administrativa competente. Pelo Decreto-Lei n.º 40 603, de 18 de maio de 1956, tal entidade passou a ser o notário. Tanto num diploma como no outro, o crime cometido por quem prestasse, neste procedimento, falsas declarações era identificado como “o crime previsto no § 5.º do artigo 238.º do Código Penal”. Esta norma dispunha assim: «O testemunho falso em matéria civil será punido com prisão maior de dois a oito anos». É com o Código do Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 42 565, de 8 de outubro de 1959, que as falsas declarações, no procedimento de justificação notarial, passaram a ser punidas com as penas apli- cáveis ao “crime de falsidade” (artigo 276.º). Por contraste com as incriminações anteriores, e pela própria formulação utilizada, é defensável o entendimento de que se quis retirar o tipo legal de crime do âmbito da secção do Código Penal que versava sobre “do falso testemunho e outras falsas declarações perante a autori- dade pública” – a secção VI, que justamente abria com o artigo 238.º – para o situar na secção II, que tratava “ da falsificação de escritos”. Neste entendimento, conclui a decisão recorrida que a indicação do crime de falsidade «embora não indicando uma concreta disposição punitiva, apontava no sentido do sancionamento como crime de falsificação de documentos, na modalidade de falsificação intelectual, também designada como falsidade (artigos 216.º, n.º 3, excluindo aparentemente a aplicação do 221.º do Código Penal de 1886)» – fls. 920, n.º 5. O Código do Registo Predial aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 611, de 28 de março de 1965, remeteu a regulação desta matéria para o Código do Notariado, que veio a ser aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 619, de 31 de março da 1967. Dele consta o artigo 107.º supra transcrito, o qual manteve a remissão para as penas aplicáveis ao crime de falsidade. Com o Código do Notariado, na versão aprovada pelo Decreto-Lei n.º 67/90, a incriminação passou, como vimos, para o artigo 106.º É com esta incriminação que surge a remissão para o “crime de falsas decla- rações perante oficial público”, mantida na versão em vigor. Perante esta alteração, é difícil sustentar – contrariamente ao que se deduzia da qualificação constante da acusação do Ministério Público – que a norma continuou a visar a penalização do crime de falsificação intelectual de documento, constante, após a revisão de 1982, da alínea b) do n.º 1 do artigo 228.º, e hoje localizada no artigo 256.º, n.º 1, alínea d) , do Código Penal. Se a nova sistemática do Código Penal, nesta

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