TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 84.º Volume \ 2012

353 acórdão n.º 360/12 medida, por este mesmo. Daí que tal desrespeito pudesse ser tido como ofensa à própria soberania do Estado solici- tado. O interesse na proteção da soberania foi depois combinado, ou até completamente substituído, pela proteção dos interesses do próprio extraditado. A ponto de o princípio da especialidade ser situado no âmbito dos direitos do homem. Nesta abordagem humanista do princípio, a especialidade seria até regra a observar em obediência ao costume internacional, e que vale mesmo na falta de disposições convencionais que a ela aludam. Houve até quem radicasse o princípio na alínea a) do n.º 3 do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (cfr. Anna Zaïri in Le Principe de la Specialité de l’Extradition au Regard des Droits de l’Homme , LGDJ, 1992, p. 19 e segs., apud Mário Mendes Serrano in Cooperação Internacional Penal I , Extradição. Transferência de Pessoas Condenadas , CEJ, p. 40). O princípio da especialidade pretende afastar os “chamados pedidos fraudulentos”, em que se invoca um facto para fundamento da extradição e se acaba por julgar o extraditado por outro que se não invoca. Assim, segundo este princípio, entre nós consagrado no artigo 16.º da Lei 144/99, que seguiu de perto o disposto no artigo 14.º da Convenção Europeia de Extradição, ratificada por Portugal, o Estado que obteve a entrega de um acusado ou de um condenado não pode proceder, sem o consentimento do Estado que extradita, por factos anteriores diferentes daqueles pelos quais foi concedida a extradição, nem sujeitar o extraditado a pena ou medida diferentes daquelas pelas quais a extradição foi concedida. O n.º 2 do artigo 16.º consagra o princípio com amplitude, proibindo, para além do mais, a simples perseguição por factos diferentes daqueles que presidiram à extradição. E não é nada de estranhar que o respeito pelo princípio da especialidade tenha sido arvorado em direito fundamental do extra- ditado, muito ligado ao princípio do acusatório, porque o extraditando, aquando da discussão da possibilidade da sua extradição, tem que ter acesso a um contraditório amplo. Tem que ter a possibilidade de se defender, face à factualidade que fundamenta o pedido, sem poder ser apanhado completamente de surpresa, já depois, quanto a procedimentos crime por factos ausentes do pedido de extradição. 5) A cooperação entre Portugal e os demais Estados rege-se, neste domínio, pelos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado português e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições da Lei 144/99, para além das do CPP (artigo 3.º da referida lei). O nosso ordenamento não prevê qualquer consequência específica para a violação do princípio da especialidade por parte do Estado requerente da extradição. E isto, a nosso ver, devido à especificidade do relacionamento entre dois Estados soberanos, como é o caso na extradição, o que, no fundo, redunda na constatação das características inerentes ao ramo de direito que é o direito internacional público. Só que, nem por isso Portugal fica privado, enquanto Estado soberano solicitado, de reagir ao que se apure ter sido uma violação do princípio da especialidade. Antes do mais, e em termos gerais, pela via político-diplomática. Por essa via, o Estado português, através da Procuradoria-Geral da República na qualidade de autoridade central, poderá pedir contas ao Estado relapso, solicitando-lhe a pertinente informação sobre a atuação dos seus tribunais, e no que toca ao que tiver sido alegado pelo extraditado. Depois, o Estado português poderá sempre invocar o desrespeito que tenha tido lugar, em futuros pedidos de extradição formulados pelo mesmo país, dificultando ou mesmo recusando novas extradições. Não está excluída, à partida, a intervenção de instâncias de jurisdição internacional, ou de tribunais internos do Estado inadimplente que o requerente acione. Resta aludir às possibilidades de reação dos tribunais internos portugueses. 6) Somos assim conduzidos a apreciar a bondade da decisão recorrida, e à luz do recurso interposto. Este STJ, sem querer inviabilizar a extradição de AA, procurou no entanto rodeá-la de garantias, a prestar pelo Estado solicitante, que afastassem a eventualidade de o extraditado vir a sofrer tratamento, na União Indiana, incompatível com os direitos do extraditado e os princípios de cooperação, vigentes entre nós. Entre essas garantias conta-se a do respeito pela regra da especialidade, da parte da União Indiana. E também neste particular foram prestadas garantias solenes ao Estado português. Se, de facto, o Estado requisitante não cumpriu aquilo a que se comprometera, não podem as instâncias judi- ciárias portuguesas considerar-se completamente estranhas à situação.

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