TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 84.º Volume \ 2012

321 acórdão n.º 328/12 aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio da fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante». O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração das dívidas que não forem integralmente pagas no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. Trata-se de um desvio à índole essencialmente adjetiva tradicional no nosso direito falimentar. Permite-se ao insolvente que seja pessoa singular, caso não satisfaça integralmente os créditos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento mas cumpra as obri- gações impostas para a satisfação possível dos credores, cedendo o seu rendimento disponível (artigo 239.º do CIRE), vir a ser exonerado das dívidas remanescentes. A exoneração tem por efeito a extinção dos créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida (com exceções que não importa enume- rar), dívidas essas que, de outro modo, seriam exigíveis ao devedor até ao limite do prazo de prescrição. Afigura-se evidente que o regime se destina, neste aspeto, a proteger o devedor e que a utilidade econó- mica do pedido corresponde, para o requerente, ao passivo de que quer ver-se exonerado, e não ao ativo com que se apresenta à insolvência. Na perspetiva do conjunto dos credores, embora em posição contraposta, é essa a mesma expressão da utilidade do incidente (Para cada um deles será o montante do respetivo crédito que possa a vir a ser declarado extinto). Ora, o critério do valor do ativo corresponde inteiramente à finalidade precípua do processo de insol- vência, que a própria lei define como um processo de execução universal que tem como finalidade a liquida- ção do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista no plano de insolvência (artigo 1.º do CIRE). A articulação desse valor com a alçada do tribunal e a correspondente irrecorribilidade das decisões que a não superem não colide com a Constituição (Acórdão n.º 343/08). Porém, a aplicação irrestrita desse mesmo critério para efeitos de deter- minação de recorribilidade das decisões relativas à exoneração do passivo restante conduz a um resultado contrário à própria razão que justifica a irrecorribilidade das decisões proferidas em causas de valor inferior à alçada do tribunal de que se recorre. Assim, um devedor cujo ativo seja superior à alçada e a quem seja inde- ferida pretensão de “exoneração de passivo restante” poderá recorrer da decisão de indeferimento qualquer que seja o montante desse passivo (embora, na prática, deva ser superior ao ativo porque isso está implícito na situação da insolvência). Porém, um devedor cujo ativo seja inferior à alçada ficará impedido de recorrer de decisão similar, mesmo que pretenda impugnar uma decisão que lhe indefira pretensão de exoneração de passivo superior à alçada do tribunal de 1.ª instância. Sujeitos em identidade de situação no que à pretensão material e de tutela jurisdicional respeita recebem tratamento diverso. Isto resulta de, na solução normativa questionada, se abstrair da finalidade especial do incidente, que é distinta da finalidade típica imediata do processo de insolvência, recorrendo-se a um fator estranho à utilidade económica específica do pedido que é objeto dessa decisão. Com esta interpretação, interessados a quem a decisão é tão ou mais desfavorável ficam impedidos de recorrer em função do valor da causa determinado pelo ativo em liquidação, enquanto outros, em idêntica ou menos desfavorável situação, gozarão da faculdade de recorrer perante decisões similares. E essa diferenciação resulta apenas de atribuição de relevância a um fator (o valor do ativo) que é estranho à finalidade legal do incidente. Assim, a escolha desse fator para determinação do valor do incidente de exoneração do passivo restante, na sua relação com a alçada do tribunal de 1.ª instância e a consequente recorribilidade das decisões nele proferidas, não pode deixar de considerar-se critério arbitrário ou ostensivamente inadmissível, por tratar desigualmente sujeitos em posição idêntica naquilo que pode justificar o acesso ao tribunal superior. Embora do artigo 20.º da Constituição não decorra o direito a um segundo grau de jurisdição em processo civil e não seja constitucionalmente proibida a adoção do valor da causa como critério de determinação da admissibi- lidade do recurso, é contrário à proibição de arbítrio um critério de determinação do valor para efeitos de relação da causa com a alçada do tribunal que conduza a que sujeitos afetados com a mesma intensidade por

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