TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 84.º Volume \ 2012
150 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL forte proteção constitucional que decorre, i. a. , dos artigos 58.º e 63.º (e também 62.º) da CRP. O facto de o direito à não diminuição do montante que se recebe pela remuneração do trabalho não ser, em si mesmo, um direito oponível à lei (porque fundamental) não significa que quanto a esse direito a lei tudo possa. Há limites constitucionais que aqui inevitavelmente se impõem. Esses limites exigem, desde logo, que a ablação de parte significativa dos rendimentos que as pessoas auferem tenha sido imposta pelo legislador por claros e percetíveis motivos de interesse público. Se esses motivos justificam a restrição de direitos que são fundamentais (artigo 18.º, n.º 2, da CRP), por maioria de razão justificarão a afetação de um direito [à não diminuição da remuneração] que não tem, em si mesmo, o estatuto de fundamentalidade. As razões de interesse público invocadas pela lei do orçamento para justificar as medidas de suspensão de pagamento (aos trabalhadores do setor público, aos pensionistas e reformados) dos subsídios de férias e de Natal inserem-se num contexto histórico complexo, com reflexos e consequências em princípios estruturan- tes da ordem constitucional portuguesa. Esse contexto histórico, na sua dimensão temporal mais próxima, é marcado pelo processo negocial entabulado entre a República, por um lado, e as instituições da União Europeia e os seus membros, por outro, para resolver o problema de emergência financeira em que se encontrava Portugal no âmbito da crise sistémica das dívidas soberanas nos países da chamada “Zona Euro”. A meu ver, um contexto como este convoca três princípios constitucionais, cujo cumprimento se impõe ao legislador. Em primeiro lugar, o princípio decorrente do artigo 9.º da Constituição, relativos às tarefas fundamen- tais do Estado. Tal como sucede com as outras constituições europeias, escritas na segunda metade do século XX, também a Constituição portuguesa instaura uma ordem estadual que assume a responsabilidade de garantir que aos seus membros sejam dadas as condições materiais e espirituais que permitam a realização de projetos de vida dignos. As tarefas fundamentais do Estado que, na Constituição portuguesa, vêm definidas no artigo 9.º, são a expressão desse compromisso constitucional básico, segundo o qual o Estado é para as pessoas e não as pessoas para o Estado. Simplesmente, nem a Constituição Portuguesa nem as outras constituições europeias consagraram (por- que não estava nas suas mãos fazê-lo) as condições fácticas que permitiriam financiar a realização das tarefas fundamentais do Estado. Assim, o primeiro motivo de interesse público que justifica esta medida legislativa é o da preservação destas condições, em ordem ao cumprimento de um dos princípios que estruturam a ordem constitucional portuguesa. Nesta perspetiva, trata-se de um princípio de salus publica , constitucionalmente entendido. O segundo princípio estruturante que é convocado pelo contexto histórico que rodeia esta medida legislativa é o da justiça intergeracional. Pode discutir-se (coisa que agora não farei) qual o exato alcance prescritivo que este princípio pode ter, e qual a sua rigorosa sede, no texto da Constituição; mas o que não pode a meu ver ser posto em causa é o postulado básico em que o mesmo assenta, e que resumo do seguinte modo: embora se não estabeleçam na Constituição limites quantitativos ao endividamento do Estado, dela decorrem implicitamente limites qualitativos, que coincidem com os limites do ónus que as gerações pre- sentes podem impor às gerações futuras sem condicionar gravemente a sua autonomia. Em uma República baseada na ideia de dignidade da pessoa (artigo 1.º), esta atenção para o justo limite de encargos a deixar para o futuro – justo limite que se ultrapassa quando se oneram as gerações seguintes de tal forma que é a sua própria esfera de decisão que é esvaziada – não pode deixar de ser também, ela própria, um dos princípios estruturantes da Constituição. A solidariedade (artigo 1.º) entre os que estão vivos não pode ser vivida de forma a excluir a solidariedade para com o futuro. Por último, a medida legislativa em apreciação justifica-se ainda no quadro do mandato constitucional para com a integração europeia (artigo 7.º, n. os 5 e 6, da CRP). Da mesma maneira que é a responsabilidade para com a integração europeia que valida o financiamento de certos Estados-Membros em dificuldades financeiras por parte de outros Estados-Membros, o que implica a assunção por estes últimos de riscos,
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