TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 84.º Volume \ 2012
113 acórdão n.º 229/12 nares e seus pressupostos. E, como vimos, não há no artigo 29.º da Constituição, que se refere às garantias substantivas do direito criminal, um preceito semelhante ao artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, que alarga, com as necessárias adaptações, as garantias em processo penal, a todos os outros processos sancionatórios. Não é, pois, possível fazer uma simples transposição do princípio da tipicidade criminal, em todo o seu rigor garantístico, para o domínio meramente disciplinar e, em especial, para o domínio do direito público disciplinar. Como diz Paulo Veiga Moura ( Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores da Administração Pública Anotado , Coimbra 2009, p. 33), “A infração disciplinar assume-se, porém, como uma infração atípica, sendo esta justamente uma das características que a distinguem do ilícito criminal. (…) Significa isto que a infração disciplinar decorre mais da violação de um dever e menos da adoção de uma conduta descrita na lei (descri- ção essa que pode nem sequer ser efetuada), pelo que a lei enumera os deveres que impendem em geral ou particular sobre o trabalhador público e considera ilícito o comportamento que atente contra tais deveres, mesmo que a conduta adotada não esteja descrita na previsão de qualquer preceito”. Ainda que se entenda que as exigências substantivas previstas no artigo 29.º da Constituição deverão tendencialmente valer no direito disciplinar, nunca poderão valer com a mesma intensidade. Claro que o legislador é livre de aproximar o direito disciplinar das exigências de tipificação rigorosa do direito criminal. Mas não é obrigado a fazê-lo. O grau de formalização legal constitucionalmente exigido ao direito disciplinar é sempre menor do que aquele que é requerido ao direito criminal. Como afirma Germano Marques da Silva ( Direito Penal Português , I, Lisboa 1997, p. 130): “Vimos opor- tunamente que uma característica que singulariza o direito penal relativamente a outros ramos do direito, e que cumpre a função garantístico-individual do direito penal, é o seu alto grau de formalização. Esta formalização que preside ao exercício do jus puniendi , mostrando-se como o exercício controlado por garantias estabelecidas a favor do delinquente, e que tem expressão em princípios como o[…] da legalidade […], não é tão exigente no direito disciplinar, embora a tendência seja para acrescer as garantias dos seus destinatários”. O princípio da legalidade não vale no plano disciplinar com a mesma rigidez com que vale no direito penal. Note-se, aliás, que a passagem do Acórdão n.º 90/88 e as duas declarações de voto do Acórdão n.º 33/02 (da autoria dos Conselheiros Paulo Mota Pinto e Fernanda Palma), que o Requerente invoca, dizem respeito a questões “processuais” e mesmo aí apenas preconizam a equiparação tendencial que se afere pelas expressões “pelo menos numa medida mínima” e “na sua ideia essencial”. É verdade que deve haver uma equiparação tendencial sob diversos aspetos, ou a respeito de diversos princípios. Neste sentido, dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira ( Constituição da República Portuguesa Anotada , 4. ª edição, p. 498): “É problemático saber em que medida é que os princípios consagrados neste artigo são extensíveis a outros domínios sancionatórios. A epígrafe “aplicação da lei criminal” e o teor tex- tual do preceito restringem a sua aplicação direta apenas ao direito criminal propriamente dito (crimes e respetivas sanções). Há de, porém, entender-se que esses princípios devem, na parte pertinente, valer por analogia para os demais domínios sancionatórios, designadamente, o ilícito de mera ordenação social e o ilícito disciplinar ” . Contudo, logo de seguida, ao esclarecerem os princípios que são concretamente aplicáveis nos domínios sancionatórios fora do âmbito penal, Gomes Canotilho e Vital Moreira excluem o princípio da tipicidade (é, aliás, o único princípio que excluem). Dizem literalmente: “Será o caso do princípio da legalidade lato sensu ( mas não o da tipicidade), da retroatividade, da aplicação retroativa da lei mais favorável, da necessidade e proporcionalidade das sanções” ( ob. cit. , p. 498). De todo o modo, o RDM assegura, ainda que de uma forma flexível, uma certa conexão entre as infra- ções e as penas. Essa conexão não é feita norma a norma, mas ela resulta do texto do RDM no seu todo e vincula a decisão do aplicador, em termos ainda admissíveis no âmbito disciplinar. Não podemos, portanto, concluir que as normas impugnadas do diploma em apreço violem um prin- cípio de tipicidade legal a que o direito disciplinar estivesse submetido. Na verdade, não ocorre qualquer violação do artigo 29.º, n. os 1 e 3, da Constituição.
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