TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 83.º Volume \ 2012

88 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL que implica partir do princípio segundo o qual a CRP, para além de conferir ao legislador estatutário o poder de enunciar as matérias sobre as quais deterá a região competência legislativa própria, também o habilitou a constituir reservas de lei a favor do legislador regional, com a consequente exclusão da possibilidade de normação administrativa nas matérias estatutariamente enunciadas. É certo que a esta tese, segundo a qual a norma estatutária, para além de concretizar o quadro constitu- cional de repartição de competências legislativas entre República e região, constitui ela própria, e no domínio do ordenamento interno da região, uma reserva material a favor do legislador regional – com a consequente exclusão da possibilidade de normação administrativa sobre a matéria –, o requerente faz acrescentar uma segunda ideia: a de que a reserva será, nesses domínios, uma reserva total, de modo a que nenhum espaço seja deixado à regulação por fonte administrativa. É isso mesmo que decorre da afirmação que faz a certo passo do seu requerimento, segundo o qual “[o] artigo 27.º, agora escrutinado, ofende a reserva de lei estabelecida pelo artigo 59.º do EPARAA, a qual é uma reserva total quanto às matérias cobertas pelo regime jurídico do licenciamento (…) das farmácias”. [cfr. supra , ponto 2 do Relatório]. Aliás, deve desde já sublinhar-se que é essencialmente esta segunda ideia que é, no presente caso, discu- tida entre o requerente e o órgão autor da norma, visto que este último, na sua resposta, não contesta propria- mente a existência da reserva; o que questiona é que ela tenha, como afirma o requerente, uma extensão total. Com efeito, e como se depreende do relato anteriormente feito, toda a argumentação apresentada pelo autor da norma parte do princípio segundo o qual os artigos 112.º, n.º 4, 227.º, n.º 1, e 232.º, n.º 1, da CRP configuram uma efetiva reserva de lei formal a favor das assembleias legislativas regionais, naquelas matérias que, sendo enunciadas nos respetivos estatutos, delimitam o âmbito da autonomia legislativa das regiões. O que se acrescenta, porém, é que essa reserva de lei formal não deve ser entendida como uma reserva material esgotante, uma vez que tal acarretaria uma interpretação arcaica do conceito de reserva de lei mate- rial, segundo a qual caberia ao ato legislativo tudo regular. (No caso, tal implicaria que ao decreto legislativo regional caberia a conformação de toda a arquitetura normativa, até ao mais ínfimo pormenor, do regime jurídico das farmácias na Região Autónoma dos Açores). Com este argumento não se questiona, portanto, que a reserva exista. Não se questiona que as normas dos Estatutos Político-Administrativos que enunciam as matérias sobre as quais a região pode legislar, para além de terem efeitos “externos”, ou seja, nas relações entre República e regiões (delimitando a esfera da autonomia legislativa das últimas face à primeira), tenham também efeitos “internos”, nas relações entre parlamentos e governos regionais, delimitando a esfera de ação reservada dos primeiros face aos segundos. O que se questiona é a extensão da reserva, na medida em que se põe em causa o princípio da total exclusão de regulamentação administrativa nas matérias enunciadas nos estatutos. Os fundamentos que para tanto se invocam são, também, de ordem constitucional. Basicamente, o que se entende é que das normas constitucionais que “habilitam” os estatutos a constituir reservas de lei a favor das assembleias legislativas regionais (artigos 112.º, n.º 4; 227.º, n.º 1; 232.º, n.º 1) se não pode retirar a ideia segundo a qual o campo reservado à lei será um campo material esgotante. E isto porque uma tal leitura, para além de contrariar outros princípios constitucionais, como os do pluralismo e da descentralização, se mostrará dificilmente compatível com as modernas exigências de uma boa administração, que, num quadro de complexidade e tecnicidade crescente, deverá conviver – sobretudo nas regiões, em que só as assembleias detêm competência legislativa – com modelos de lei flexíveis e abertos à normação administrativa, que pos- sibilitem a adaptação da norma legal às condições específicas da sua aplicação. Como quer que seja, a verdade é que deste quadro de argumentação, apresentado tanto pelo requerente quanto pelo autor da norma, resultam duas questões diferentes, que devem ser distinguidas, sendo que a resolução da primeira tem prioridade lógica sobre a resolução da segunda. Com efeito, só será possível determinar qual a extensão da reserva de lei que o artigo 59.º, n.º 2, alínea e), do EPARAA instituiu – e qual a margem por ela eventualmente deixada à regulação administrativa – se antes for resolvida a questão de saber se a norma estatutária, que identifica, nos termos dos artigos 227.º

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