TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 83.º Volume \ 2012

30 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Deve, por isso, a política legislativa criminal fazer corresponder a este juízo de perigosidade um tipo de crime de perigo abstrato, simultaneamente preservando os princípios conformadores do Estado de Direito Democrático a par da garantia da operacionalidade do instrumento jurídico. (...).» Vejamos, agora, a norma aprovada pelo Decreto em causa. Em função de tal norma temos que qualquer pessoa pode ser agente do crime de enriquecimento ilícito (artigo 335.º-A, n.º 1). Diferentemente do que constava da redação original do Projeto de Lei n.º 72/XII (1.ª), supra mencionado, o crime deixou de ser específico, no sentido de apenas os funcionários e os titulares de cargos políticos ou altos cargos públicos poderem ser agentes do mesmo. A qualidade do agente – funcionário, titular de cargo político ou titular de alto cargo público – tem apenas como consequência a agravação da pena aplicável ao crime (artigos 386.º, n.º 1 e 27.º-A, n.º 1). Pode afirmar-se que o tipo legal de crime de enriquecimento ilícito está construído a partir de três moda- lidades típicas: adquirir património sem origem lícita determinada e incompatível com rendimentos e bens legítimos; possuir património sem origem lícita determinada e incompatível com rendimentos e bens legítimos; ou deter património sem origem lícita determinada e incompatível com rendimentos e bens legítimos. A descrição dos elementos típicos supõe que o agente adquira, possua ou detenha património, enten- dendo-se por património todo o ativo patrimonial existente no país ou no estrangeiro, incluindo o patrimó- nio imobiliário, de quotas, ações ou partes sociais do capital de sociedades civis ou comerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veículos automóveis, carteiras de títulos, contas bancárias, aplicações financeiras equivalentes e direitos de crédito, bem como as despesas realizadas com a aquisição de bens ou serviços ou relativas a liberalidades efetuadas no país ou no estrangeiro (artigos 335.º-A, n. os 1 e 2, 386.º, n. os 1 e 2, e 27.º-A, n. os 1 e 2); sem origem lícita determinada (artigos 335.º-A, n.º 1, 386.º, n.º 1, e 27.º-A, n.º 1); incompatível com os seus rendimentos ou bens legítimos, entendendo-se por rendimentos e bens legítimos todos os rendimentos brutos constantes das declarações apresentadas para efeitos fiscais, ou que delas deves- sem constar, bem como outros rendimentos e bens com origem lícita determinada (artigo 335.º-A, n. os 1 e 3) ou, tratando-se de funcionário ou de titular de cargo político ou de alto cargo público, todos os rendimentos brutos constantes das declarações apresentadas para efeitos fiscais, ou que delas devessem constar, bem como outros rendimentos e bens com origem lícita determinada, designadamente os constantes em declaração de património e rendimentos (artigos 386.º, n. os 1 e 3, e 27.º-A, n. os 1 e 3); e que o valor da incompatibilidade exceda 100 salários mínimos mensais (artigos 335.º-A, n.º 4, 386.º, n.º 4, e 27.º-A, n.º 4). Desta descrição típica resulta que o conteúdo do ilícito é o mesmo ainda que o agente da prática do crime de enriquecimento ilícito seja funcionário, titular de cargo político ou titular de alto cargo público. E dela resulta também, numa interpretação que a norma, tal como vem redigida, necessariamente com- porta, que o que se pretende punir é a incompatibilidade existente entre o património adquirido, detido ou possuído e os rendimentos e bens legítimos do agente, património esse que, não tendo origem lícita deter- minada, indicia que o acréscimo patrimonial adveio da prática anterior de crimes. Isso mesmo se extrai tanto da epígrafe enriquecimento ilícito, como da parte final do n.º 1 de cada artigo, quando aí se deixa expresso que «(…) se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal (…)», e, bem assim, dos respetivos trabalhos preparatórios, onde se pode colher com toda a clareza que a incriminação em causa visa obstar a que os mais diversos crimes fiquem impunes em função das mais diversas vicissitudes, incluindo processuais. 8.2. Ora, se a finalidade é punir, através da nova incriminação, crimes anteriormente praticados e não esclarecidos processualmente, geradores do enriquecimento ilícito, então não há um bem jurídico claramente definido, o que acarreta necessariamente a inconstitucionalidade da norma. Pune-se para proteger um qual- quer bem jurídico indefinido ( v. g., a autonomia intencional do Estado, o património, a liberdade sexual, saúde pública …).

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