TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 83.º Volume \ 2012
25 acórdão n.º 179/12 6.1. Ao nível do direito internacional, nos “trabalhos preparatórios”, faz-se, essencialmente, referência à Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (doravante, “Convenção”), a qual entrou em vigor, na ordem internacional, em 12 de julho de 2003, e viria a ser aprovada pela Resolução da Assembleia da Repú- blica n.º 47/2007, de 21 de setembro. No seu artigo 20.º, cuja epígrafe é, precisamente, “Enriquecimento ilícito”, pode ler-se o seguinte: «Sem prejuízo da Constituição e dos princípios fundamentais do respetivo ordenamento jurídico, cada Estado parte deve adotar as medidas legislativas ou de outro tipo que se revelem necessárias para criminalizar o enriquecimentoilícito, quando praticado intencionalmente, ou seja, o aumento significativo do património de um funcionário público não explicável tendo em conta os rendimentos declarados.” Ora, constituindo a Convenção um instrumento normativo produtor de efeitos jurídicos vinculativos, os seus preceitos contêm deveres jurídicos para os Estados Partes, concretamente, o dever de criminalização de certas condutas. Sucede que, ao contrário de Portugal, alguns Estados Partes formularam reservas ao artigo 20.º Foi o caso do Vietname e do Canadá, essencialmente com fundamento no mesmo argumento, a saber, o princípio da presunção de inocência, reconhecido não só nas leis fundamentais destes Estados, como no artigo 14.º, n.º 2, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Isto não implica, note-se, que os Estados signatários da Convenção que (ainda) não tenham crimi- nalizado o enriquecimento ilícito e que não hajam formulado reservas ao conteúdo da mesma estejam a incumprir as obrigações assumidas. Com efeito, é o próprio artigo 20.º que possibilita aos Estados a não incriminação do enriquecimento ilícito com fundamento na Constituição ou em princípios fundamentais dos respetivos ordenamentos jurídicos. Assim se explicam, por exemplo, as declarações da Finlândia, do Reino Unido e dos Estados Unidos da América ao abrigo do Mechanism for the Review of Implementation of the United Nations Convention against Corruption (disponível em www.unodc.org ) . A Finlândia considera desnecessária a previsão de um tipo legal de crime como o enriquecimento ilícito, pois assevera que os mecanismos legais e regulamentares já existentes são suficientes. Já os Estados Unidos – e, no mesmo sentido, o Reino Unido – sublinham impressivamente que “a implementação do artigo 20.º, “Enriquecimento ilícito”, implicaria a transferência para o arguido do ónus da prova relativamente ao estabe- lecimento da natureza legítima da fonte de rendimento em causa. Uma vez que a Constituição dos Estados Unidos prevê a presunção de inocência do arguido, é impossível criminalizar o enriquecimento ilícito.” Vale por dizer que uma eventual não criminalização do enriquecimento ilícito por parte do legislador nacional – ou de qualquer outro Estado que não haja formulado reservas ao artigo 20.º da Convenção – não implica inelutavelmente o incumprimento de uma obrigação convencional internacional. Portugal pode invocar princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico-constitucional – inclusivamente princípios que incorporam igualmente normas de ius cogens de direito internacional – desde que isso não o afaste de um necessário combate à conduta visada através de outros meios. Isto mesmo se confirma a partir da leitura do Parecer do Conselho Superior da Magistratura, de 9 de fevereiro de 2011, que apreciou o Projeto de Lei n.º 494/XI/2.ª (PCP): «[O artigo 20.º da Convenção] não implica necessariamente que haja um crime designado de enriquecimento ilícito, mas sim que a legislação permita punir esse enriquecimento ilícito, o que pode ser efetivado através de outros tipos legais de crime.” Esta flexibilidade, aliás, está bem patente na página oficial da Convenção, onde se pode ler que “os Estados Partes devem obrigatoriamente tipificar como crime: o suborno a funcionários públicos, a corrupção ativa a oficiais estrangeiros, a fraude e a apropriação indébita, a lavagem de dinheiro e a obstrução da justiça”, e devem “procurar tipificar as condutas de corrupção passiva de oficiais estrangeiros, tráfico de influências, abuso de poder, enriqueci- mento ilícito, suborno no setor privado e desvios de recursos no setor privado.» 6.2. No espaço da União Europeia, a qual é parte da Convenção, por decisão do Conselho de 25 de setembro de 2008 (2008/801/CE), existem instrumentos que, não se referindo à incriminação do
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