TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 83.º Volume \ 2012
166 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL 3.4. Sustenta ainda o recorrente que a interpretação normativa sob fiscalização viola o disposto no n.º 9 do artigo 32.º da Constituição, segundo o qual “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja compe- tência esteja fixada em lei anterior”. Consagra-se neste preceito o princípio do juiz legal ou do juiz natural, que visa garantir que nenhuma causa seja julgada por um tribunal criado ad hoc para esse efeito ou por um tribunal designado discriciona- riamente, devendo essa competência resultar da aplicação de normas orgânicas e processuais que contenham regras dirigidas à determinação do tribunal que há de intervir em cada caso, segundo critérios objetivos (vide, sobre o sentido e alcance do princípio do juiz natural, Figueiredo Dias, em «Sobre o sentido do princípio jurídico-constitucional do “juiz-natural”», na Revista de Legislação e de Jurisprudência , Ano 111.º, pp. 83-88, e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 614/03, acessível em www.tribunalconstitucional.pt ) . Na hipótese da interpretação normativa sindicada, a possibilidade de o Ministério Público, na fase de inquérito, determinar a separação de processos, não implica um “desaforamento” arbitrário do juiz de ins- trução que já tenha sido chamado a proferir alguma decisão no inquérito originário que contenda com o princípio consagrado no artigo 32.º, n.º 9, da Constituição. É que, ainda que seja o Ministério Público a decidir da separação de processos, é a própria lei que fixa os critérios objetivos que poderão fundamentar tal separação, bem como o tribunal com competência para conhecer dos processos separados (critérios esses que são precisamente os mesmos no caso de a decisão ser proferida pelo juiz de instrução criminal). A possibilidade conferida ao Ministério Público de, na fase de inquérito, determinar a separação de processos, não implica, pois, a criação de um tribunal ad hoc , nem a manipulação arbitrária das regras pro- cessuais ou de repartição de competência entre tribunais, resultando a eventual alteração do juiz de instrução criminal competente para intervir na fase de investigação da aplicação das regras gerais e abstratas definidoras da competência funcional dos diversos tribunais que integram a organização judiciária portuguesa, e não de uma qualquer determinação discricionária para intervir em determinado processo, pelo que não se mostra violada a proibição contida no artigo 32.º, n.º 9, da Constituição. 3.5. Entende ainda o recorrente que a interpretação normativa aplicada pela decisão recorrida viola o disposto no artigo 202.º, n.º 2, da Constituição, que reserva ao juiz o exercício das funções materialmente jurisdicionais, cabendo-lhe assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. Segundo este preceito constitucional “Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade demo- crática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”. Conforme referem Gomes Canotilho e Vital Moreira ( Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, pp. 508-509, da 4.ª edição, da Coimbra Editora): «(...) diferentemente do que acontece noutros ordenamentos constitucionais, a função de dizer o direito em nome do povo é atribuída pela Constituição da República Portuguesa, aos tribunais e não aos juízes. A função jurisdicional pertence, porém, aos juízes, sendo os tribunais (nos quais se incluem magistrados do Ministério Público, funcionários judiciais admi- nistrativos, gestores judiciais) esquemas indispensáveis ao exercício da jurisdictio pelo juiz. Tribunal terá aqui um sentido jurídico-funcional – daí a epígrafe “função jurisdicional” – conexionada com um sentido inerente à função de jurisdictio e uma função jurídico-material (“ jurisdictio ” como atividade do juiz mate- rialmente caracterizada). (…) Isto não perturba o entendimento de que neste artigo (artigo 202.º, n.º 1) a Constituição estabelece uma reserva de jurisdição no sentido de que dentro dos tribunais só os juízes poderão ser chamados a praticar atos materialmente jurisdicionais. O conceito constitucional de função jurisdicional pressupõe, portanto, a atribuição da função jurisdicional a determinadas entidades (magistrados) que atuam estritamente vinculados a certos princípios (independência, legalidade, imparcialidade)». Sem necessidade de previamente se efetuar uma delimitação doutrinária dos atos que se consideram integrar a reserva do juiz na atividade jurisdicional, facilmente se constata que, se a nossa Constituição per- mite, como acima se evidenciou, a atribuição da direção da fase de investigação preliminar em processo penal
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