TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 82.º Volume \ 2011
88 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL dessa actividade, exigindo universalmente uma subjectivação da empresa nos moldes próprios da iniciativa privada. Tal significa, inevitavelmente, a dessubstancialização, nesta área, do sector social, pois as entidades que o integram e que, na consecução do seu escopo, realizem prestações de medicamentos são submetidas a uma artificiosa operação de reconversão, que verdadeiramente as desfigura, tornando-as indistintas, quanto ao modus operandi , das pessoas colectivas que nada mais visam que não o lucro para apropriação privada. Há que atentar, na verdade, na real natureza do impacto causado, por esta medida, na garantia de inte- gridade do sector social constitucionalmente outorgada. Não estamos em face de uma pontual limitação da liberdade de escolha dos meios e processos de actuação, circunscrita a um determinado aspecto da organiza- ção da esfera funcional das pessoas colectivas integrantes do sector social, que não deixariam, por via disso, de intervir nessa mesma qualidade. Estamos antes perante a imposição, como modo de ser obrigatório para credenciar o desenvolvimento de qualquer actividade na área da assistência e da comercialização medicamen- tosas, de uma configuração subjectiva que, por não corresponder à que é timbre da do sector social, obriga à constituição de um novo ente: a sociedade comercial, a forma típica de actuação privada no mercado. Bem vistas as coisas, esta forçosa interposição de um novo sujeito jurídico, que, independentemente da sua adaptabilidade a objectivos distintos do lucro privado, não corporiza a identidade singular e específica do sector social, significa que a este é vedada a liberdade, não apenas de organização, mas de acesso directo à titularidade de farmácias. Só despidas das suas vestes próprias, e com a adopção de uma forma jurídica descaracterizada, do ponto de vista dos fins sociais que perseguem, é que as instituições deste sector podem aceder indirectamente (através da propriedade de sociedades comerciais) ao exercício de farmácias. O que representa – não há como contestá-lo – uma delimitação negativa do sector social. Esta afectação não assinala, sem mais, uma violação da garantia institucional estabelecida no artigo 82.º da Constituição, pois a mesma não pode ser entendida como a garantia de um determinado âmbito operativo, nem sequer nas áreas mais tradicionais de intervenção da solidariedade social. Mas obriga a uma justificação (cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada , Coimbra, 4.ª edição, pp. 976 e 977). Essa justificação não pode radicar na ontologia da própria actividade, não pode firmar-se na natureza intrínseca da actividade de fornecimento de medicamentos. De facto, nada há nela que aponte para exigên- cias que só a forma da sociedade comercial pode satisfazer, ou, mesmo, satisfazer mais adequadamente. Pelo contrário. Ela não é, nunca foi, considerada uma pura actividade comercial, mas antes uma acti- vidade de interesse social directo e imediato, pelo seu contributo indispensável à prestação de cuidados de saúde. Daí que, não estando subtraída ao comércio lucrativo, a actividade de farmácia tenha sido sempre objecto de uma intensa regulação condicionante – mais estrita, anteriormente ao Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto, mas mantida, em aspectos importantes, no âmbito de vigência deste diploma. O atendimento do relevo social do acesso aos medicamentos tinha, aliás, expressão eloquente no regime anterior ao Decreto-Lei n.º 307/2007. Estando então a propriedade de farmácias reservada, em princípio, a farmacêuticos, os n. os 4 e 5 da Base II da Lei n.º 2125 abriam uma excepção para as misericórdias e outras ins- tituições de assistência e previdência social, que poderiam deter farmácias destinadas aos seus serviços privativos e também farmácias abertas ao público, desde que, quanto a estas, houvesse interesse público no seu funcio- namento em determinado local e não aparecessem farmacêuticos interessados na sua instalação ou aquisição. Dificilmente se poderá contestar que a actividade farmacêutica se apresenta como um terreno “natural” de actuação das entidades que, movidas por fins de solidariedade, se dedicam a promover a saúde, particular- mente a de cidadãos que merecem uma reforçada protecção constitucional. Por identidade do objecto dessa actividade e do escopo social dessas entidades, ou, pelo menos, por força de conexões materiais e instrumen- tais evidentes entre um e outro, as formas estruturais de organização e a lógica de funcionamento próprias do sector social mostram-se perfeitamente adequadas à satisfação dos interesses dessa natureza que, nesta área, se fazem sentir. Só pela eventual atribuição de prevalência a um interesse ou valor conflituantes de outra natu- reza se poderá justificar que o legislador estabeleça uma reserva de sociedade comercial, quanto ao exercício colectivo da actividade farmacêutica, dela excluindo as entidades do sector social.
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