TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 82.º Volume \ 2011
292 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Numa fase inicial, ainda no procedimento administrativo de supervisão, nenhuma dúvida haverá quan- to à possibilidade de utilização dos elementos coligidos pela Autoridade da Concorrência, no âmbito dos poderes de supervisão, em ulterior procedimento contra-ordenacional. A proibição de tal utilização – como refere F. Lacerda da Costa Pinto, a propósito de outra entidade reguladora: a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) – “seria mesmo algo de iníquo e contraditório, porque acabaria por criar uma zona franca de responsabilidade: qualquer elemento entregue à supervisão que viesse mais tarde a ser relacionado com uma infracção não poderia ser usado como prova. Como não há processo sancionatório sem prova, as competências contra-ordenacionais das autoridades de supervisão ficariam inutilizadas através de uma espécie de imunidade antecipada conseguida na fase de su- pervisão. Ou seja, o cumprimento da lei (na fase de supervisão) acabaria por impedir o cumprimento da lei (na fase sancionatória). Nenhum sistema jurídico racional subsistiria com uma antinomia desta natureza.” (J. de Figueiredo Dias, M. da Costa Andrade e F. Lacerda da Costa Pinto, Supervisão, direito ao silêncio e legalidade da prova , Almedina, 2009, pp. 106 e 107). Não será procedente o argumento de que, sendo as informações e documentos recolhidos sob a jus- tificação da utilização de poderes de supervisão, a entidade obrigada a prestá-las, que vê, posteriormente, utilizados tais elementos em ulterior processo contra-ordenacional, é induzida em erro. De facto, encontrando-se a Autoridade da Concorrência vinculada, de acordo com um princípio de legalidade de promoção, a investigar as infracções cometidas no âmbito do regime da concorrência, não pode deixar de considerar-se expectável que qualquer informação que indicie a prática de uma infracção contra- -ordenacional terá de desencadear investigação destinada a apurar do seu efectivo cometimento, circunstân- cia conhecida ou cognoscível por qualquer agente económico sujeito à actividade reguladora (em sentido paralelo, J. de Figueiredo Dias, M. da Costa Andrade e F. Lacerda da Costa Pinto, ob. cit., p. 34). Já importa realçar contudo que, sendo certa a existência, na fase do exercício de poderes de supervisão, de vinculação das entidades reguladas a amplos deveres de colaboração, numa lógica de transparência e de máxima lealdade para com o Estado, é igualmente indesmentível que, a partir do momento em que se dá início ao procedimento contra-ordenacional, confrontando-se o arguido com a infracção indiciada, o para digma de relacionamento altera-se, assumindo presença o direito à não auto-incriminação, refracção do próprio estatuto de arguido. Ainda assim, a justificação de tal exigência mantém-se, pois – como desenvolve- remos infra – tal direito, no âmbito contra-ordenacional sobre o qual nos debruçamos, apenas pode conter a vertente do direito ao silêncio, enquanto possibilidade de não prestar declarações ou responder a perguntas sobre os factos imputados. A compressão do conteúdo potencial máximo do direito à não auto-incriminação, exercida pela protec- ção constitucional do princípio da concorrência, implica que o domínio de abrangência de tal direito não abarque, assim, a possibilidade de o arguido, em processo contra-ordenacional por práticas anticoncorren- ciais, recusar a prestação de informações e a entrega de documentos, que estejam em seu poder e lhe sejam solicitados pela Autoridade da Concorrência, pressuposta a dimensão objectiva desses elementos, desprovi- dos de conteúdo conclusivo ou juízo valorativo, no sentido auto-incriminatório. 15 . Impõe-se avaliar se a compressão do direito à não auto-incriminação, pressuposta na interpretação normativa cuja sindicância é solicitada, respeita todos os requisitos constitucionalmente impostos às restri- ções de direitos fundamentais. Do ponto de vista formal, a restrição em análise obedece aos pressupostos de previsão prévia em diploma de carácter geral e abstracto, no caso, emitido pela Assembleia da República: a Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho. A restrição é funcionalmente dirigida à salvaguarda da concorrência, como princípio constitucional estruturante do funcionamento dos mercados, cuja eficiência é cometida ao Estado, a título de incumbência económica prioritária, conforme já explanado no ponto 7. Acresce que a restrição obedece ao princípio da proporcionalidade, sendo adequada – correspondendo a meio idóneo à prossecução do objectivo de protecção do interesse constitucional em análise – bem como
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