TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 82.º Volume \ 2011

250 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL nem a violação de um direito absoluto, a ilicitude extracontratual só poderia dar-se por violação de “uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios” (artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil). Não basta que alguém tenha cometido um facto culposo causador de prejuízos a outrem para que este possa imediatamente reivindicar daquele o pagamento de uma indemnização. Para que proceda a imputação ao autor do facto de responsabilidade civil , de que beneficia o titular do interesse afectado, é mister que este esteja juridicamente protegido, ou por um direito absoluto, ou por uma norma legal que tenha como escopo justamente a protec- ção desse interesse. A responsabilidade civil traduz-se numa relação obrigacional entre duas esferas jurídicas, e só assim se identifica o sujeito credor da indemnização. Por isso mesmo é que o artigo 78.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais apenas responsabiliza os gerentes, administradores ou directores para com os credores da sociedade “pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinados à protecção destes”. Se não for esse o caso, os credores ficam sem a faculdade de accionar directamente aqueles sujeitos. E a restrição tem a virtualidade de integrar coerente- mente a norma no sistema de responsabilidade civil extracontratual. É a conexão entre o facto culposo e um interesse protegido (perante o autor desse facto) do credor da indemnização que também falta aqui, para que a solução fosse compatível com o instituto da responsabili- dade civil extracontratual. E, como (bem) se diz no Acórdão, não pode haver responsabilidade civil se não estiverem verificados os seus pressupostos gerais. A solução é uma manifestação clara da “fuga para o direito privado”, fenómeno hoje recorrente e que, em si mesmo, não merece oposição. Mas os institutos e regimes privatísticos não são livremente moldáveis para mais fácil e expedita satisfação dos interesses públicos que, em cada caso, inspiram a solução. Há que respeitar limites, desde logo os limites constitucionais. E os resguardos que o direito civil adopta, quanto à definição das situações de ilicitude extracontratual, não correspondem a detalhes técnico-jurídicos facilmente descartáveis. Há que ver que a responsabilidade civil é sempre um travão à liberdade de acção, valor que sobremodo o direito civil preza e que constitui tam- bém um relevante valor constitucional. Longe de mim contestar que quem assume poderes de direcção de estruturas organizativas, erigidas em pessoas colectivas, cuja actividade transcende a esfera pessoal para produzir efeitos na “esfera pública” (no sentido que Habermas dá ao conceito) assume simultaneamente deveres funcionais, por cujo cumprimento deve responder perante a comunidade e o Estado. Mas a responsabilidade por papéis sociais é o terreno pró- prio da responsabilidade contra-ordenacional, não da responsabilidade civil. A qualificação, que consta da epígrafe do preceito, de “responsabilidade civil” é apenas, recorrendo ao nosso Eça, o “manto diáfano” que mal esconde a “nudez forte” da responsabilidade contra-ordenacional, su- jeita aos princípios que a regem, designadamente o da proporcionalidade. E é por violação desses princípios, como mais desenvolvidamente defendo nos acórdãos acima citados, que nasce a inconstitucionalidade de que a norma padece. Tendo encontrado esse vício primário na norma sob apreciação, globalmente considerada, fico dispen- sado de avaliar separadamente a sua vertente de direito adjectivo, atinente à utilização, nesta matéria, do mecanismo da reversão. Direi apenas que tenho por desajustadas ao controlo de constitucionalidade normativa , que é o nosso, as considerações, constantes da parte final da fundamentação, quanto ao modo como se processou, em con- creto, a lide que estes autos documentam. – Joaquim de Sousa Ribeiro .

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