TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 82.º Volume \ 2011
189 acórdão n.º 413/11 a norma em causa não contende com esse espaço de autodeterminação informacional. Não é o poder público que se imiscui no círculo de reserva; é a acção ou omissão do magistrado que projecta a sua vida privada e familiar para o espaço público. A opção não é, porém, de decisiva relevância para resposta à questão colocada no presente recurso, não permitindo dá-la como arrumada, porquanto no n.º 1 do artigo 26.º não se consagra apenas essa reserva. A própria liberdade da vida privada, o direito a ser o próprio a regular, livre de ingerências estatais e sociais a esfera da sua vida pessoal, a liberdade geral de acção da pessoa, cabe igualmente no n.º 1 do artigo 26.º da Constituição, como integrante do direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Todavia, como qualquer direito fundamental este direito não pode ser entendido com um alcance absoluto. Sempre que um direito conflitue com outro direito ou bens constitucionalmente protegidos, esse conflito deve ser resolvido através da recíproca e proporcional limitação de ambos, em ordem a optimizar a solução (princípio da concordância prática) de modo a garantir uma relação de convivência equilibrada e harmónica em toda a medida possível. E, mais do que a generalidade dos direitos, nesta vertente de liberdade geral de acção, a liberdade da vida privada sofre limitações de diversa índole que constituem limites intrínse- cos determináveis a posteriori do seu larguíssimo espectro prima facie . Em primeiro lugar, há que considerar as limitações à acção posterior do titular decorrentes dos vínculos em que ele voluntariamente ingressa e que, afinal, correspondem ou são consequência (de algum modo, são custos) do seu próprio exercício. Os deveres do casamento, os deveres resultantes do ingresso numa situação profissional estatutária, são exemplos de exercício desta autonomia individual e de autodeterminação de cada um para traçar o seu próprio plano de vida que implicam limitações desta ordem (no exercício posterior) à liberdade da vida privada. Em segundo lugar, a liberdade de acção na esfera de vida pessoal tem de ser harmonizada com a pros- secução de outros valores constitucionais, designadamente daqueles em que o titular esteja individualmente comprometido. Um desses valores é o da confiança e prestígio dos tribunais como órgãos de soberania, sendo em função disso legítimo impor aos juízes, titulares individuais do órgão de soberania tribunais e gozando de um estatuto constitucional próprio, deveres de decoro e reserva que impliquem limitações na sua esfera de acção pessoal que, sem atingir o núcleo essencial desse direito de liberdade pessoal, sejam, segundo as cir- cunstâncias de cada momento histórico, razoáveis e adequadas para evitar risco de erosão da imagem pública dos tribunais e da confiança que a comunidade neles tem de poder depositar. Sobre os agentes que exercem poderes públicos relativamente aos quais não podem funcionar ou só de modo muito remoto e indirecto podem funcionar, os mecanismos da responsabilidade política e do julgamento eleitoral, é legítimo que, numa sociedade democrática, recaia um especial dever de contenção nos comportamentos da vida pública ou da vida particular que transpareçam para o espaço público e de preservação da imagem das instituições que servem. Ora, não pode dizer-se que se traduza numa valoração contrária à ordem jurídica constitucional a atribuição de relevância, neste contexto, às repercussões públicas da vida familiar dos magistrados judiciais. Como diz Paulo Mota Pinto, “O Direito ao Livre Desenvolvimento da Personalidade”, in Portugal-Brasil Ano 2000 , Stvdia Ivridica, n.º 40, p. 222, “ a “ordem constitucional” incorporará uma remissão geral para o conjunto da ordem jurídica que não se apresente desconforme com a Constituição – isto é, para “o conjunto das normas que são formal e materialmente constitucionais”, representando a formulação de uma reserva de lei ou do Direito”. Com efeito, na constância do casamento, apesar da evolução dos costumes e dos seus reflexos jurídicos na instituição matrimonial, designadamente em matéria de regime do divórcio, os cônjuges estão reciprocamente vinculados, além do mais, pelos deveres de respeito e de fidelidade (artigo 1672.º do Código Civil). Deste modo, prevendo a norma do último segmento do artigo 82.º do EMJ a qualificação como ilícito disciplinar de condutas da vida privada dos magistrados judiciais que se repercutam na vida pública em termos de afectar a dignidade exigida ao exercício das respectivas funções e não condutas da esfera íntima ou que se circunscrevam ao espaço privado ou familiar ( id est , que não se exteriorizem, que não passam para
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