TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 82.º Volume \ 2011

171 acórdão n.º 410/11 Sustenta a recorrente que é inconstitucional o regime sancionatório definido pelo Estatuto do Ensino Particu- lar e Cooperativo por nele se não ter respeitado a reserva da função legislativa: ao remeter para normação adminis- trativa (mais exactamente para portaria) a tipificação dos comportamentos puníveis; a adequação das sanções aos tipos; a escolha do procedimento sancionatório a aplicar, o legislador do Estatuto – diz a recorrente – fez aquilo que a Constituição lhe proíbe: deixou de regular matérias que só poderiam ser reguladas por acto da função legislativa, reenviando portanto para uma outra autoridade (no caso, a administrativa) o exercício de uma competência que só a ele pertencia. É certo – e a doutrina assim o tem consensualmente defendido (por todos: Afonso Queiró, “Teoria dos Regu- lamentos”, em Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano XXVII, p. 11) – que até 1982 nada havia na Constituição que impedisse o legislador, quer parlamentar quer governamental, de “deslegalizar” certa normação por ele inicia- da, reenviando a sua continuação para regulamentos administrativos que dispusessem sobre a matéria em termos novos e originários, desde que a referida matéria não estivesse ela própria, por imposição constitucional, sujeita a reserva de lei. Foi exactamente isso que fez – e validamente, à luz da primeira versão da Constituição – o legislador que defi- niu o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo. Com efeito, por um lado e como já se viu, não estava então reservada à lei a «matéria» por ele regulada. Por outro,o «reenvio» que se fazia no artigo 99.º do Decreto‑Lei n.º 553/80 implicava uma verdadeira «deslegali- zação», na medida em que através dele se habilitava a administração a emitir, sobre a matéria, uma verdadeira regulação praeter legem, porque primária e inovatória. Atentemos agora, com mais vagar, neste segundo aspecto. Não é fácil – como bem se sabe – estabelecer traços seguros entre aqueles regulamentos administrativos que são secundum legem e aqueles que vão para além da lei, ou que são praeter legem. No entanto, se se tomar como bom o critério doutrinário segundo o qual “o regulamento executivo não pode inovar no domínio das restrições à esfera individual, nem criar preceitos que se não liguem por um vínculo de pormenorização ou procedimentalização às normas contidas na lei regulamentada”, por ser ele um regulamento “secundário ou derivado, relativamente ao regimeestabelecido pelo legislador” (José Manuel Sérvulo Correia, Legalidade e Autonomia Contratual nos Con­ tratos Administrativos, Coimbra, 1987, p. 241), limitando-se a “editar as providências necessárias para assegurar a fidelidade ou (…) a conformidade à vontade do legislador (…)” sem dar vida a nenhuma regra de fundo, a nenhum preceito jurídico “novo” e “originário” (Afonso Queiró, ob. cit. , p. 9), então parece certo que na categoria destes regulamentos se não insere aquele para o qual reenviou o legislador que estabeleceu o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo. Na verdade – e ao contrário do que sustenta a entidade recorrida – a lei não definiu então, com densidade suficiente, o regime sancionatório que deveria ser aplicado às escolas inadimplentes. Limitou-se a estabelecer o elenco das sanções a cominar “em caso de violação do disposto no decreto-lei”, afirmando ainda que tais sanções deveriam ser aplicadas de acordo com a natureza e a gravidade da violação. Foi, pois, o regulamento administrativo que veio densificar todo este regime, que a lei, finalmente, apenas desenhou a título principial: como já vimos, a Portaria n.º 207/98 definiu os ilícitos sancionáveis; estabeleceu as sanções correspondentes a cada um; fixou o procedimento a adoptar na aplicação das sanções. É bem difícil sustentar que um regulamento assim não inova no domínio das restrições à esfera individual, ou não cria normação primária, dando vida a preceitos jurídicos “novos” ou “originários”. Seguro é porém que a habilitação legal para a emissão deste tipo de regulamentos não era proibida pela primeira versão da Constituição. Veio no entanto a proibi-la a revisão constitucional de 1982, o que não pode deixar de ser tido em conta no caso agora sob juízo. É que, nele, se não manteve apenas a habilitação legal para a emissão de regulamentos praeter legem ; mais do que isso, tal habilitação só veio a ser cumprida pela Portaria n.º 207/98, anos após a entrada em vigor da Lei de Revisão Constitucional n.º 1/82. E não restam dúvidas que a Lei de Revisão pretendeu, justamente, vedar ao legislador este ‘tipo’ de reenvios normativos. Antes do mais, ficou claro, a partir de 1982, que o direito à criação de escolas privadas era para a Constituição uma liberdade fundamental constitucionalmente tutelada. O direito sancionatório previsto pelo artigo 99.º do

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