TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 82.º Volume \ 2011
164 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL 2005, p. 104, n.º 36, e Rui Pinto Duarte, “Efeitos da declaração de insolvência quanto à pessoa do devedor”, ibidem , 146 (Autor, este, que não hesitou em afirmar que “parece, pois, que o legislador do CIRE se equivocou quanto ao sentido da sua fonte inspiradora”). Seja como for, a consagração da medida provocou, quase de imediato, viva reacção crítica na doutrina nacional, dela merecendo epítetos como “estranha” (Coutinho de Abreu, ob. loc. cit. ), ou “absurdas” (Rui Pinto Duarte, ob. cit ., p. 145, em referência às normas que a regulam: para além da norma sub judicio , o artigo 190.º do CIRE). Mas, para lá das críticas que possa suscitar no plano do direito ordinário, será que a norma da alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE está também ferida de inconstitucionalidade? 6. Assim o entendeu o Acórdão n.º 564/07, considerando que a disposição, ao impor a inabilitação como efeito necessário da situação de insolvência culposa, violava o artigo 18.º, n.º 2, e o artigo 26.º da Constituição, na parte em que este último reconhece o direito à capacidade civil. Para decidir em tal sentido, o mencionado Acórdão, depois de afastar a violação de outros parâmetros consti- tucionais invocados pelo requerente, expendeu a fundamentação que a seguir se transcreve: “ De facto, a inabilitação a que a insolvência pode conduzir só pode ser a correspondente ao instituto jurídico civilístico com essa designação, previsto nos artigos 152.º e seguintes do Código Civil – neste sentido, Carvalho Fernandes, ‘A qualificação da insolvência e a administração da massa insolvente pelo devedor’, Themis , edição esp., 2005, p. 97. Trata-se, pois, de uma situação de incapacidade de agir negocialmente, traduzindo a inaptidão para, por acto exclusivo (sem carecer do consentimento de outrem), praticar “actos de disposição de bens entre vivos e todos os que, em atenção às circunstâncias de cada caso, forem especificados na sentença” (artigo 153.º, n.º 1, do Código Civil). Ora, o reconhecimento constitucional da capacidade civil, como decorrência imediata da personalidade e da subjectividade jurídicas, cobre, tanto a capacidade de gozo, como a capacidade de exercício ou de agir. É certo que, contrariamente à personalidade jurídica, a capacidade, em qualquer das suas duas variantes, é algo de quantificá- vel, um posse susceptível de gradações, de detenção em maior ou menor medida. Mas a sua privação ou restrição, quando afecte sujeitos que atingiram a maioridade, será sempre uma medida de carácter excepcional, só justificada, pelo menos em primeira linha, pela protecção da personalidade do incapaz. É “em homenagem aos interesses da própria pessoa profunda” (Orlando de Carvalho, Teoria geral do direito civil , polic., Coimbra, 1981, p. 83), quando inabilitada, por razões atinentes à falta de atributos pessoais, para uma autodeterminação autêntica na condução de vida e na gestão dos seus interesses, que a incapacidade, em qualquer das suas formas, pode ser decretada. Daí que, para além do disposto no n.º 4 do artigo 26.º da Constituição, as restrições à capacidade civil, incluin- do a capacidade de agir, só sejam legítimas quando os seus motivos forem “pertinentes e relevantes sob o ponto de vista da capacidade da pessoa”, não podendo também a restrição “servir de pena ou de efeito de pena” (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada , 4.ª edição, Coimbra, 2007, p. 465). Nenhuma destas duas condições está aqui preenchida. De facto, neste âmbito, a inabilitação não resulta de uma situação de incapacidade natural, de um modo de ser da pessoa que a torne inapta para a gestão autónoma dos seus bens, mas de um estado objectivo de impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas (artigo 3.º, n.º 1, do CIRE), imputável a uma actuação culposa do devedor ou dos seus administradores. Forma de conduta que, só por si, não é, evidentemente, indiciadora de qualquer característica pessoal incapacitante. Em vez de acorrer em tutela de um “sujeito deficitário”, precavendo os seus interesses, a inabilitação é, no qua- dro da insolvência, uma resultante forçosa de uma dada situação patrimonial, efectivada com total abstracção de características da personalidade do inabilitado, que possam ter conduzido a essa situação. Que essa correlação inexiste, prova-o, além do mais, o facto de a inabilitação ser decretada por um prazo fixo, sem possibilidade de levantamento, previsto no regime comum, para o caso de desaparecimento das causas de incapacidade natural que, nesse regime, a fundaram. E nem se diga que a figura é instrumentalizada para defesa dos interesses dos credores, pois a inabilitação em nada contribui para a consecução da finalidade do processo de insolvência. Este, nos termos do artigo 1.º do CIRE, “é um
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