TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 82.º Volume \ 2011
156 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL É certo que esta falta de consciência pode ser provocada (ou acentuada) pelo próprio decurso do tem- po, pelo que a acção de investigação, potencialmente instaurada décadas volvidas após a procriação (a não existir caducidade), é de molde a “apanhar de surpresa” o investigado e a sua família, com os incómodos e a “perturbação” inerentes, com afectação (especialmente sentida) do direito à reserva da intimidade privada. Mas, em face do dever de assumir a condição jurídica de pai, se existir o correspondente vínculo de sangue – o que, justamente, a acção permitirá certificar –, a eventual confiança do progenitor em que o seu estado pessoal já não sofrerá alterações advenientes de um acto “enterrado” num passado longínquo não merece tutela. A não caducidade reforça a viabilidade de a acção ser instaurada após a morte do investigado e depois de operada a transmissão sucessória. Nessa hipótese, são ainda identificáveis interesses de segurança dos her- deiros, não confundíveis com a expectativa de virem a herdar, interesses que o reconhecimento da qualidade de filho (e herdeiro) do investigante virá, evidentemente, afectar. Note-se, antes de mais, retomando o que se escreveu no Acórdão n.º 486/04, «que a ordem jurídica não mostra uma preocupação absoluta com a segurança patrimonial dos herdeiros reconhecidos do progenitor, podendo qualquer herdeiro preterido intentar acção de “petição da herança”, a todo o tempo, com sacrifício de quem tiver recebido os bens (artigo 2075.º do Código Civil)». E não parece justificar-se que um herdeiro, que já o era à data da abertura da herança, seja melhor tratado, em caso de preterição, do que aquele que, naquela data, ainda não possuía essa qualidade, embora já reunisse as condições para ser reconhecido como tal. De todo o modo, a tutela de um interesse de segurança na estabilidade patrimonial não pode sobrepor-se à tutela do interesse no preenchimento completo dos dados de identificação pessoal, levando ao sacrifício total e definitivo de um bem eminentemente constitutivo da personalidade de um sujeito nascido fora do casamento. E, a não se entender que contra soluções desse tipo militam decisivas objecções de princípio, poderão ponderar- -se alternativas, já alvitradas na doutrina, que deixem incólume a satisfação do direito à identidade pessoal, satisfazendo, ao mesmo tempo, pelo menos os interesses dos que já herdaram do pretenso pai. 10. Numa avaliação ajustada aos dados normativos, sociológicos e técnico-científicos do presente, não se vislumbram, pois, bens constitucionalmente credenciados, susceptíveis de contrabalançar e justificar uma tão incisiva restrição aos direitos à identidade pessoal e a constituir família que o regime fixado no n.º 1 do artigo 1817.º representa. Esta conclusão, só por si, já aponta no sentido de que a limitação temporal ao exer- cício da acção de investigação de paternidade sofre de inconstitucionalidade – cfr., na doutrina, em idêntico sentido, Guilherme de Oliveira, ob. cit. , esp. p. 13, e “A jurisprudência constitucional portuguesa e o direito das pessoas e da família”, in XXV anos de jurisprudência constitucional portuguesa , Coimbra, 2009, pp.193 segs., pp. 202-203, Rafael Vale e Reis, O direito ao conhecimento das origens genéticas , Coimbra, 2008, esp. pp. 206-209, e Duarte Pinheiro, O direito de família contemporâneo , 3.ª edição, Lisboa, 2010, p. 193. O acréscimo de tutela trazido pelo alongamento do prazo não conduz a que o regime agora consagrado ultrapasse o limiar da proibição de insuficiência. Nem leva a outra conclusão a consciência de que o esgo- tamento do prazo de dez anos só importa caducidade se entretanto já tiverem decorrido três anos sobre o conhecimento de factos ou circunstâncias que tenham possibilitado ou justificado a investigação. Na realidade, só uma ideia de “sanção” pela inércia ou pouca diligência do investigante – ideia estranha, aliás, ao instituto da caducidade – poderia justificar que este, tendo tido oportunidade real de accionar a investigação dentro de um prazo razoável, ficasse inibido de o fazer, após o decurso desse prazo. Mas essa ideia fundante, que faz apelo à autoresponsabilidade do interessado, surgiria aqui inteiramente deslocada, atenta a natureza dos direitos fundamentais em causa. Há, na verdade, que partir do princípio, já bem expresso no Acórdão n.º 486/04, de que «a apreciação da conveniência em determinar a identidade do seu progenitor, como elemento da sua identidade pessoal, corresponde a uma faculdade eminentemente pessoal, em que apenas pode imperar o critério do próprio filho (…)». A isso há a acrescentar que este critério pode ser mutável, em correspondência com a variação no tempo dos quadros relacionais e situacionais que podem influenciar uma tomada de decisão, tal como são subjectivamente sentidos e interpretados pelo pretenso filho.
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