TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 82.º Volume \ 2011
154 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL prazos de caducidade) revelam-se, numa apreciação actualizada, como insubsistentes, ou, pelo menos, como despojados de uma dignidade de tutela a que seja de atribuir um mínimo de eficácia contrabalanceadora. Quanto ao “envelhecimento” ou perecimento das provas, já tudo foi dito a salientar que é um argumen- to hoje com escasso sentido, dada a disponibilidade de prova por ADN, com base em exame laboratorial sobre amostras biológicas do investigante e do investigado. Este meio de prova, não só perdura inalterável, até para além da morte do pretenso pai, não enfraquecendo com a passagem do tempo, como garante um índice de certeza muito próximo dos 100%. A frequentemente esgrimida possibilidade de instrumentalização da acção para fins exclusivos de enrique- cimento patrimonial – a tão propalada “caça às fortunas” – esteve na base do regime de caducidade, consagrado no Código Civil de 1966. Este regime, não só se posicionou em sentido contrário ao estabelecido no Decreto n.º 2, de 25 de Dezembro de 1910, o qual permitia, salvas as excepções, a instauração da acção em vida do pretendo pai ou mãe, ou dentro do ano posterior à sua morte, como se afastou, em termos comparatísticos, do vigente na grande maioria das ordens jurídicas que nos são mais próximas (a espanhola, a italiana, a alemã e a brasileira, designadamente), as quais optam pela regra da não caducidade. Para Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil anotado , V, 1995, p. 82, a solução do direito anterior (a do mencionado Decreto n.º 2) «tinha reconhecidamente graves inconvenientes, o mais importante dos quais foi o de ter convertido a acção de determinação legal do pai num puro instrumento de caça à herança paterna… quando o pai fosse rico». Contra essa “má instrumentalização”, vingou o intento «de trazer o estabelecimento da paternidade para o período da vida do filho em que o poder paternal é mais necessário e pode ser mais útil». É uma evidência que há toda a vantagem em que o reconhecimento da paternidade se verifique na fase mais precoce possível da vida do filho, para assim este poder beneficiar, em pleno e em todas as dimensões, do desempenho da responsabilidade parental. Mas retirar daí um argumento a favor da perda da possibilida- de de saber quem é o pai, decorrido certo prazo após a maioridade, não só é excessivo, como se nos afigura insustentável, à luz dos valores consagrados na Constituição de 1976. Na verdade, o direito a constituir família, se não pode garantir a inserção numa autêntica comunidade de afectos – coisa que nenhuma ordem jurídica pode assegurar – implica necessariamente a possibilidade de assunção plena de todos os direitos e deveres decorrentes de uma ligação familiar susceptível de ser juri dicamente reconhecida. Faz parte do estatuto de filho a titularidade de direitos patrimoniais, o direito a ali- mentos e o direito a herdar, na qualidade de herdeiro legitimário. Pela natureza das coisas, a aquisição desse estatuto, por parte dos filhos nascidos fora de matrimónio, processa-se de forma diferente da dos filhos de mãe casada, uma vez que só estes podem beneficiar da presunção de paternidade marital. Mas essa aquisição, através do reconhecimento judicial, não deve ser indevidamente obstaculizada, a pretexto de que o que move o interessado são pretensões de ordem patrimonial – pretensões inteiramente legítimas, no caso de ele ser filho. A peremptória proibição de discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36.º, n.º 4, da Constituição) não actua só depois de constituída a relação, projecta-se também na fase anterior, vedando que sejam postos entraves injustificados a dar tradução jurídica (com os direitos, todos os direitos, inerentes) ao vínculo biológico de filiação. A infundada disparidade de tratamento, em violação daquela proibição, tanto pode resultar da atribuição de posições inigualitárias, em detrimento dos filhos provenientes de uma relação não conjugal, como, antes disso, e mais radicalmente do que isso, do estabelecimento de impedimen- tos desrazoáveis a que alguém que biologicamente é filho possa aceder ao estatuto jurídico correspondente. Para além de todas as considerações de carácter sociológico, quanto às mudanças operadas na estrutura e repartição dos bens de fortuna, que tornam menos convincente o argumento, é, pois, descabido e cons- titucionalmente claudicante fazer decorrer de eventuais motivações patrimoniais uma razão bastante para precludir a aquisição do estado pessoal que é condição de satisfação desse interesse. No que, em particular, diz respeito ao direito à herança, no caso de o filho estar num período da vida em que já não pode beneficiar da acção paterna também na esfera pessoal, mormente do seu contributo educativo para a formação da personalidade, seria um efeito perverso negar-lhe, a pretexto dessa situação impossibilitante, o acesso ao único direito que lhe restará exercer, a ser procedente a acção de investigação.
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