TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 82.º Volume \ 2011
147 acórdão n.º 401/11 Este direito fundamental pode ser visto numa perspectiva estática – onde avultam a identificação gené tica, a identificação física, o nome e a imagem – e numa perspectiva dinâmica – onde interessa cuidar da verdade biográfica e da relação do indivíduo com a sociedade ao longo do tempo. A ascendência assume especial importância no itinerário biográfico, uma vez que ela revela a identidade daqueles que contribuíram biologicamente para a formação do novo ser. O conhecimento dos progenitores é um dado importante no processo de auto-definição individual, pois essa informação permite ao indivíduo encontrar pontos de referência seguros de natureza genética, somática, afectiva ou fisiológica, revelando- -lhe as origens do seu ser. É um dado importantíssimo na sua historicidade pessoal. Como expressivamente salientaGuilherme de Oliveira, «saber quem sou exige saber de onde venho» (em “Caducidade das acções de investigação”, ob. cit. , p. 51), podendo, por isso dizer-se que essa informação é um factor conformador da identidade própria, nuclearmente constitutivo da personalidade singular de cada indivíduo. Mas o estabelecimento jurídico dos vínculos da filiação, com todos os seus efeitos, conferindo ao indiví- duo o estatuto inerente à qualidade de filho de determinadas pessoas, assume igualmente um papel relevante na caracterização individualizadora duma pessoa na vida em sociedade. A ascendência funciona aqui como um dos elementos identificadores de cada pessoa como indivíduo singular. Ser filho de é algo que nos distin- gue e caracteriza perante os outros, pelo que o direito à identidade pessoal também compreende o direito ao estabelecimento jurídico da maternidade e da paternidade. Por outro lado, o direito fundamental a constituir família consagrado no artigo 36.º, n.º 1, da Consti- tuição, abrange a família natural, resultante do facto biológico da geração, o qual compreende um vector de sentido ascendente que reclama a predisposição e a disponibilização pelo ordenamento de meios jurídicos que permitam estabelecer o vínculo da filiação, com realce para o exercitável pelo filho, com o inerente conhecimento das origens genéticas. Na verdade, o direito a constituir família, se não pode garantir a inserção numa autêntica comunidade de afectos – coisa que nenhuma ordem jurídica pode assegurar – implica necessariamente a possibilidade de assun ção plena de todos os direitos e deveres decorrentes de uma ligação familiar susceptível de ser juridicamente reconhecida. Pela natureza das coisas, a aquisição do estatuto jurídico inerente à relação de filiação, por parte dos filhos nascidos fora do matrimónio, processa-se de forma diferente da dos filhos de mãe casada, uma vez que só estes podem beneficiar da presunção de paternidade marital. Mas essa aquisição, deve ser garantida através da previsão de meios eficazes. Aliás a peremptória proibição de discriminação dos filhos nascidos fora do casa- mento (artigo 36.º, n.º 4, da Constituição) não actua só depois de constituída a relação, projecta-se também na fase anterior, exigindo que os filhos nascidos fora do casamento possam aceder a um estatuto idêntico aos filhos nascidos do matrimónio. A infundada disparidade de tratamento, em violação daquela proibição, tanto pode resultar da atribuição de posições inigualitárias, em detrimento dos filhos provenientes de uma relação não conjugal, como, antes disso, e mais radicalmente do que isso, do estabelecimento de impedimentos desrazoáveis a que alguém que biologicamente é filho possa aceder ao estatuto jurídico correspondente. É, pois, pacífica a previsão constitucional dos direitos ao conhecimento da paternidade biológica e do estabelecimento do respectivo vínculo jurídico, como direitos fundamentais. Isso não impede, contudo, que o legislador possa modelar o exercício de tais direitos em função de outros interesses ou valores constitucionalmente tutelados. Não estamos perante direitos absolutos que não possam ser confrontados com valores conflituantes, podendo estes exigir uma tarefa de harmonização dos interesses em oposição, ou mesmo a sua restrição. No actual ordenamento jurídico português, a acção de investigação de paternidade prevista nos artigos 1869.º e seguintes do Código Civil constitui o único meio destinado à efectivação do direito fundamental ao estabelecimento do vínculo jurídico da paternidade biológica, sendo também o meio mais eficaz de satisfação do direito ao conhecimento da ascendência biologicamente verdadeira quando o suposto pai recusa qualquer colaboração. Em certos casos, a lei interdita o acesso a esta acção para estabelecer a filiação biológica, consagrando verdadeiras restrições aos referidos direitos, como sucede nos casos de adopção (artigo 1987.º do Código
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