TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 80.º Volume \ 2011

395 acórdão n.º 164/11 Na lógica argumentativa da decisão recorrida, a extinção superveniente da instância, por força da apli- cação retroactiva do prazo de dez anos fixado pela nova redacção do artigo 1841.º do Código Civil, compor- taria uma gravosa violação do princípio da confiança e da segurança jurídica. Com efeito, na sequência do Acórdão n.º 23/06, os tribunais portugueses depararam-se com uma situação de aparente inexistência de norma de fonte legal. Tendo em conta que os tribunais não podem abster-se de administrar a Justiça sob invocação de falta de norma aplicável (artigo 8.º, n.º 1, do Código Civil), ponderaram aqueles a eventual repristinação da norma vigente à data da entrada em vigor do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 344, de 25 de Novembro de 1966, mas afastaram esta solução, por força do n.º 2 do artigo 290.º da Constituição da República Portuguesa. Na verdade, por força dos artigos 102.º a 107.º e 130.º do Código Civil de Seabra de 1867 as acções de impugnação de paternidade apenas eram admitidas, de modo assaz restrito. Em regra, com fundamento na “impossibilidade física de acesso” e, ainda assim, restringindo-se a legitimidade activa para impugnação ao cônjuge-marido, com vedação de acesso a tal mecanismo aos filhos “ilegítimos” (cfr. Guilherme de Oliveira, Critério Jurídico da Paternidade , Coimbra, 1983, pp. 63 e 64). Acresce que, para além do cônjuge-marido, apenas os seus herdeiros (então, assim ditos) “legítimos” podiam impugnar a paternidade de outros filhos, de acordo com fundamentos muito restritos e num prazo muito reduzido de sessenta dias contados do início da posse dos bens do alegado pai pelo filho. Na sequência da instauração da 1.ª República, foi aprovada a Lei da Protecção aos Filhos, pelo Decreto n.º 2 do Governo Provisório, de 25 de Dezembro de 1910 (posteriormente publicado in Diário do Governo , n.º 70, de 27 de Dezembro de 1910), que, ainda que revogando os artigos 101.º a 136.º do Código Civil de Seabra, de 1867 (cfr. artigo 59.º do Decreto n.º 2), manteria um regime jurídico de impugnação da pater- nidade bastante restritivo, no que diz respeito aos filhos (então assim ditos) “ilegítimos” (no mesmo sentido, ver Guilherme de Oliveira, Critério Jurídico da Paternidade , cit., pp. 63 e 64). Com efeito, é verdade que o artigo 37.º do referido Decreto n.º 2, de 25 de Dezembro de 1910, estendeu a legitimidade activa para impugnação da paternidade aos próprios filhos (então assim ditos) “ilegítimos”, ao contrário do que sucedera durante a vigência do artigo 106.º do Código Civil de Seabra, de 1867. Porém, a instauração de tal acção de impugnação ficava dependente não só do preenchimento de um elenco taxativo e restrito de fundamentos de impugnação (artigo 34.º do Decreto n.º 2), em muito semelhantes aos previstos no revogado artigo 130.º do Código Civil de Seabra –, bem como da instauração durante a vida do pai ou, caso contrário, a um prazo de caducidade de um ano posterior à sua morte, ressalvadas algumas excepções (artigo 37.º do Decreto n.º 2). Assim, a concepção sócio-ideológica que presidiu à aprovação quer do Código Civil de Seabra, de 1867, quer da Lei da Protecção ao Filhos (aprovada pelo Decreto n.º 2, de 25 de Dezembro de 1910), levaria a que a eventual aplicação daqueles pretéritos preceitos legais – nos dias que correm – resultasse, sem margem para quaisquer dúvidas, numa situação ainda mais gravosa para o direito à identidade pessoal dos que pretendiam averiguar jurisdicionalmente os respectivos laços familiares de paternidade. Foi esse entendimento que vingou nos tribunais portugueses (cfr., por todos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Abril de 2008, no âmbito do Processo n.º 08A474, disponível in www.dgsi.pt ) entre a data de produção de efeitos do Acórdão n.º 23/06, do Tribunal Constitucional, e da entrada em vigor da nova redacção do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, conferida pela Lei n.º 14/2009. A decisão recorrida entendeu precisamente que a jurisprudência consolidada nos tribunais comuns seria configurável como meio de formação e de revelação de norma aplicável ao caso em apreço, de modo que tal norma jurídica, de formação jurisprudencial, corresponderia a um comando permissivo de instauração de acção de impugnação da paternidade, sem dependência de qualquer prazo de caducidade. A verdade é que, em bom rigor, nem sequer se pode invocar a pré-existência de uma orientação juris- prudencial consolidada no sentido de que, desde a publicação do Acórdão n.º 23/06, do Tribunal Constitu- cional, as acções de investigação da paternidade deixariam de estar sujeitas a qualquer prazo de caducidade. Aliás, conforme evidenciado pelos próprios autos que deram lugar ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Abril de 2008 (proferido no âmbito do Processo n.º 08A474, disponível i n www.dgsi.pt ),

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