TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 80.º Volume \ 2011
31 acórdão n.º 214/11 agentes do Estado e de outras pessoas colectivas públicas. Como não está em causa um problema atinente ao recorte material da função administrativa (que, como o Tribunal sempre tem dito, dificilmente se retirará da Constituição) mas um conflito de competências entre dois poderes do Estado, para se saber se o poder parlamentar invadiu ou não o campo próprio do poder governativo é preciso que este último seja visto precisamente como aquilo que é – como um poder que, para além de administrar, governa. Ou como diz a Constituição: como poder exercido pelo órgão de condução da política geral do país. 3. Entendeu a maioria do Tribunal que poderia sustentar, neste caso, a pronúncia de inconstituciona- lidade (por violação do princípio da separação dos poderes) na simples caracterização do Governo enquanto órgão superior da administração pública, em geral, e enquanto órgão dotado das competências administrati- vas especiais que a Constituição, no artigo 199.º, alíneas c) e e) , lhe atribui. Dissenti desta fundamentação porque a entendi insuficiente. A Assembleia, por lei, decidiu vanificar uma política que o Governo prosseguira (através de um procedi- mento complexo que, como já disse, não incluiu apenas actos normativos) sem nada colocar em seu lugar. E ordenou-lhe que adoptasse uma outra. Entendo que a decisão parlamentar violou o princípio da separação dos poderes – nessa sua dimensão positiva a que alude o Acórdão, e que inclui ainda a co-responsabilidade dos diferentes poderes do Estado no cumprimento de tarefas constitucionalmente definidas – porque inva diu o núcleo essencial do poder do executivo enquanto poder governativo, tornando-o nessa sua dimensão incapaz de responder por uma política que (não) escolheu. E entendo, ainda, que, ao considerar o esta- tuto constitucional do executivo apenas na sua dimensão de “órgão superior da administração pública”, o Acórdão acaba por fundir numa mesma argumentação duas questões distintas, a que a Constituição respon- deu de diferente forma: uma, relativa aos limites da actuação do Parlamento face ao Governo em contexto de separação de poderes; a outra, relativa aos limites da lei face à administração, mormente ao seu poder regulamentar, em contexto de distinção substancial das funções do Estado. Não era a segunda questão que agora estava em causa. – Maria Lúcia Amaral . DECLARAÇÃO DE VOTO Acompanhei a decisão do presente Acórdão, bem como, no geral, a sua fundamentação: as normas constantes dos artigos 1.º e 3.º do Decreto n.º 84/XI, da Assembleia da República são inconstitucionais por violação do princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania, e, quanto às restantes nor- mas, a sua inconstitucionalidade é consequencial. No entanto, entendo dever precisar alguns pontos em que me afastei da respectiva fundamentação. Considero, assim como a maioria que fez vencimento, que não resulta da Constituição uma reserva de competência regulamentar a favor do Governo, e que não é possível extrair do texto constitucional uma pré- -delimitação de um campo que de modo exclusivo lhe esteja reservado (reserva de administração). A Consti- tuição também não reserva ao Governo a exclusiva definição das opções em matéria de políticas públicas. Tal não exclui que se deva considerar que a Lei Fundamental impõe o respeito por um espaço mínimo e essencial de atribuições e responsabilidade próprio do Governo (aliás, a decisão a que se chega neste Acórdão é disso testemunho), que se procurará na delimitação constitucionalmente consagrada para a actividade deste e dos restantes órgãos. Esse núcleo essencial pode extrair-se da configuração constitucional das atribuições do Governo (no que aqui mais nos interessa, no confronto com as do Parlamento), necessariamente encarada à luz da separação e interdependência de órgãos de soberania. Resulta da Constituição que o Governo é um órgão com legi timidade democrática, politicamente responsável perante o Parlamento, que o fiscaliza (exigindo-se, assim, um mínimo de responsabilidade própria de actuação). A Constituição incumbe o Governo da condução da
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