TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 80.º Volume \ 2011
304 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL direito penal (artigos 27.º, n.º 2, 32.º, n.º 4) justifica-se certamente de um modo essencial pelo fim da desco- berta da verdade material, sem prejuízo de visar igualmente o respeito das garantias de defesa (artigo 32.º). Finalmente, quando o artigo 202.º, n.º 1, atribui aos tribunais competência para administrar a justiça, esta referência em matéria penal tem que entender-se como significando a justiça material baseada na verdade dos factos, que é indisponível, não se admitindo a condenação do arguido perante provas que possam conduzir à sua inocência nem a sua absolvição perante prova validamente produzida e contraditada dos factos que lhe são imputados. É bem certo que “atenta estrutura acusatória do processo e posição institucional do tribunal, a produção oficiosa de meios de prova pelo tribunal à luz deste princípio de investigação deve ter um papel residual” (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, p. 837). Mas relativamente a elementos de prova já constantes do processo – obviamente desde que não atingidos pelas proibições de valoração, designadamente, que não contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas – não existe tal risco de subversão da diferenciação de papeis entre órgão de acusação e órgão de julgamento. Assim compreendido o princípio do acusatório, a consideração oficiosa de documentos juntos ao inquérito não é de molde a com- prometer as garantias de defesa só pelo facto de a acusação não ter indicado expressamente tal meio de prova. 9. Do exposto resulta que, quando cada uma das circunstâncias analisadas se verifique isoladamente, não pode falar-se em violação dos princípios constitucionais do processo penal ou de deficit das garantias de defesa. Não viola o núcleo desses princípios a valoração de documentos constantes do processo e indicados pela acusação como meio de prova, ainda que não se tenha procedido à sua leitura (ao seu expresso exame) em audiência. E também não os infringe permitir que se valorem oficiosamente documentos constantes do processo desde o inquérito, ainda que não indicados pela acusação, se se tiver procedido ao seu exame em audiência. Quid juris , porém, quando as duas circunstâncias se juntarem? Quando, como na norma em apre- ciação, nem o Ministério Público (no requerimento de produção de prova) nem o juiz (durante a audiência) tiverem procedido de modo a confrontar o arguido com o documento? Em princípio, perante a conjugação das duas circunstâncias, não pode manter-se a mesma solução para a hipótese de cada uma delas ocorrer isoladamente, sem com isso entrar em conflito com a exigência de que o processo penal assegure todas as garantias de defesa, consagrada no n.º 1 do artigo 32.º da CRP. Uma tal solução pressuporia não só que o arguido, através do seu defensor, examina o processo, mas que procede a esse exame com um grau de diligência e em condições tais – de tempo, de modo e de lugar -, que o habilita a que se aper- ceba da existência nele de todo e qualquer documento, do seu potencial probatório e da sua utilizabilidade em termos de poder antecipar contra ele a defesa que entenda. Porém, elevar os deveres de diligência da defesa a um tal patamar traduzir-se-ia na imposição de um ónus a cargo do arguido que pode gerar compromisso para as garantias do processo penal, com risco de um inocente poder vir a ser condenado por causa de não ter apre- sentado a sua versão quanto ao significado desse documento ou de lhe não ter oposto contraprova. E esse é um risco que não pode desvalorizar-se, com o fundamento, de carácter geral, de que a defesa é tecnicamente assegurada por profissionais sujeitos a deveres deontológicos e ao correspondente padrão de diligência, sendo o perigo para as garantias de defesa despiciendo e inerente a exigências de praticabilidade do funcionamento das instituições numa sociedade democrática. Na verdade, se em processos simples ou pouco complexos e a que corresponda um dossier (processo na acepção de caderno de papéis), materialmente bem organizado e pouco volumoso, se apresenta curial presumir o apercebimento da existência e do valor probatório dos documentos incorporados por parte do arguido ( rectius, do seu defensor), já o mesmo não pode dizer-se em processos complexos, muito volumosos ou em que a relevância do documento não seja evidente. Se a própria acusação não o invoca, por não se aperceber dele ou do seu significado ou contributo probatório, bem pode ter acontecido o mesmo com a defesa.
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