TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 80.º Volume \ 2011
280 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL É evidente – lê-se no citado Acórdão n.º 634/83 – que o juízo sobre a necessidade do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador, ao qual se há-de reconhecer, também nesta matéria, um largo âmbito de discricionariedade. A limitação da liberdade de conformação legislativa, nestes casos, só pode, pois, ocorrer quando a punição criminal se apresente como manifestamente excessiva’. Ora, tal como se concluiu no Acórdão n.º 604/99 e se reproduziu no Acórdão n.º 134/01, também as normas em apreciação no presente recurso não infringem os limites constitucionalmente impostos à criminalização, não envolvendo, como ali se escreveu, ‘uma situação reconduzível, pela sua excessividade, à violação do princípio da proporcionalidade e ao desrespeito do artigo 18.º da CR’. Com efeito, e tal como o acórdão recorrido claramente explica e o Tribunal Constitucional já também afirmou, as condutas incriminadas (actualmente) pelos artigos 105.º (abuso de confiança fiscal) e 107.º (abuso de confiança contra a segurança social) põem em causa interesses de tal forma relevantes que legitimam a opção do legislador. (…)”. Por fim, no Acórdão n.º 54/04 (disponível e m www.tribunalconstitucional.pt ) o Tribunal veio considerar estas considerações acabadas de transcrever plenamente transponíveis para a incriminação hoje constante do artigo 105.º do RGIT, orientação que novamente se reitera e que vale igualmente para o artigo 107.º do RGIT.» Partindo da jurisprudência citada, dir-se-á que é impossível negar alguma similitude entre os elemen- tos típicos do artigo 105.º, n.º 1, do RGIT e os elementos típicos do artigo 107.º, n.º 1, do RGIT. Ambos pressupõem a falta de cumprimento do dever de entrega de quantias retidas a terceiros, fosse relativamente a trabalhadores – retenção de imposto na fonte, para efeitos de IRS, ou retenção de parcela de contribuição devida à segurança social, com consequente dever de posterior entrega ao Estado. Por outro lado, ao contrário do que sucedeu a propósito das normas que foram alvo de apreciação pelos Acórdãos n.º 347/86, n.º 370/94, n.º 958/96, n.º 329/97 e n.º 108/99 ( supra citados), relativas a crimes praticados por militares, nem sequer se pode afirmar que o crime em causa seja praticado no exercício de uma função específica e, como tal, exija uma particular característica do respectivo agente. E, mesmo que se admitisse que a função em causa seria a de administrador ou de gerente de pessoas colectiva de natureza comercial, tal apropriação indevida tanto pode ocorrer nos casos previstos no n.º 1 do artigo 105.º do RGIT, como nos casos do n.º 1 do artigo 107.º do mesmo diploma legal. Chegados a este ponto, poderia parecer que não existem fundamentos substantivos que justifiquem o tratamento diferenciado daquelas situações. Porém, assim não é. Se analisarmos o regime específico de finan ciamento da Segurança Social, verificaremos que é legítimo ao legislador ordinário estabelecer normas san- cionatórias distintas, em função de objectivos de preservação daquele sistema de financiamento, atentas as suas peculiaridades. Sendo certo que o n.º 2 do artigo 63.º da CRP determina que “incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado”, não é menos verdade que tal sistema foi concebido pelo legislador ordinário como um sistema fortemente contributivo, ou seja, assente nas contri- buições suportadas pelos respectivos beneficiários, em função das respectivas remunerações (Gomes Canotilho/ Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada , Coimbra Editora, 2010, p. 817). Por força do artigo 92.º da Lei de Bases da Segurança Social (aprovada pela Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro), as fontes de financiamento do sistema público de Segurança Social são diversificadas, delas constando, designadamente, as quotizações dos trabalhadores beneficiários [alínea a) do referido artigo 92.º] e as contribuições das entidades empregadoras [alínea b) ], para além das transferências provenientes do Orçamento de Estado [alínea c) ]. Assim sendo, o risco de ocorrência de um movimento sistemático de recusa de entrega das contribuições devidas pelos trabalhadores e pelas entidades empregadoras colocaria em causa, de modo evidente, a própria subsistência do sistema de Segurança Social, tal como constitucional e legalmente instituído. Deste modo, pode compreender-se que o legislador ordinário tenha optado por incriminar, de modo mais intenso, condutas que
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