TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 80.º Volume \ 2011

270 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL (…) 24 – Ora, no caso em apreço, o princípio da presunção de inocência é invocado, na sua dimensão processual, precisamente como proibição de inversão de ónus da prova em detrimento do arguido. Alegadamente, o entendimento de que o tráfico de estupefacientes constitui um crime de perigo abstracto, promoveria uma inversão do ónus da prova contra reo . Porém, esta alegação encerra um evidente equívoco: se a incriminação de perigo abstracto é admissível consti- tucionalmente, ante os princípios da necessidade e da culpa, então não faz sentido referir uma inversão do ónus da prova; o cometimento do crime deve ser, naturalmente, provado pela acusação, no plano das imputações objectiva e subjectiva; o que se não requer é a comprovação de que foi criado um perigo ou de que o meio de cometimento do crime foi perigoso, precisamente porque a incriminação não se funda no perigo concreto causado, mas na perigosidade geral da acção, isto é, na sua aptidão causal para causar perigos de certa espécie, abstraindo de outras circunstâncias também necessárias para que algum destes perigos se produza realmente; e, da mesma sorte, não se exige que o dolo abarque o perigo. Consequentemente, a norma contida no n.º 1 do artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 430/83, na interpretação que lhe deu o tribunal a quo, não viola o princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição.» Do exposto resulta que é jurisprudência firme e constante deste Tribunal que as normas incriminadoras que tipifiquem crimes de perigo abstracto não violam os princípios constitucionais especificamente invoca- dos pelo recorrente. 8. Resta, então, verificar se esta jurisprudência é aplicável ao tipo de crime previsto no n.º 1 do artigo 292.º do Código Penal. No caso da norma ora em apreço, importa notar que aquela visa antecipar a protecção de um bem jurí­ dico valioso – a segurança rodoviária – que encerra em si próprio diversos outros bens jurídicos individua­ lizáveis, tais como o direito à vida e à integridade física de terceiros ou o direito à propriedade privada. Assen­ te numa observação empírica, alicerçada em critérios médico-científicos, o legislador pôde concluir que a ingestão de álcool que atinja uma proporção de 1,2 gramas (ou mais) por litro de sangue é apta a incrementar o risco de lesão daqueles bens jurídicos (assim, ver Paula Ribeiro de Faria, in Comentários Conimbricenses , Tomo II, 1999, Coimbra, p. 1093). Deste modo, não se vislumbra de que modo pode verificar-se uma violação do princípio da inter- venção mínima do Direito Penal – assente na ideia de proporcionalidade na restrição do direito à liberdade pessoal (artigo 18.º, n.º 2, da CRP) –, na medida em que aquela restrição é, simultaneamente, “necessária” à protecção de outros bens jurídicos constitucionalmente protegidos, “adequada” à diminuição dos riscos de lesão de tais bens e “proporcionada em sentido estrito”, por assentar em critérios médico-científicos consen- sualizados que permitem aferir o grau de perturbação dos condutores sobre a influência de álcool. De igual modo, à semelhança do que já foi dito por este Tribunal a propósito do Acórdão n.º 426/91, tal incriminação não belisca igualmente quer o princípio da culpa (artigos 1.º, 2.º e 25.º, n.º 1, todos da CRP), quer o princípio da presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2, da CRP). Por um lado, o crime de condução sob a influência de álcool já adquiriu uma ressonância ética indesmentível na comunidade jurídica portuguesa, progressivamente sedimentada na verificação do aumento de mortes e de ferimentos graves nas estradas nacionais, em resultado da condução sob aquela influência. 9. Por último, alude o recorrente à circunstância de ter sido feita prova de que o mesmo não colocou em causa qualquer bem jurídico. Não é, todavia, pertinente esta asserção, uma vez que a decisão recorrida – que é um dado para este Tribunal – considerou que o crime era de perigo abstracto.

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=