TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 80.º Volume \ 2011

263 acórdão n.º 95/11 não é conforme à Constituição Portuguesa ” ( idem, p. 23 – itálicos do autor – negritos nossos). Desta forma, o artigo 292.º do CP, ao ser recortado como um crime de perigo abstracto, desrespeita o princípio da ofensividade, da carência de tutela penal e a cláusula da exigência mínima (em matéria de incriminação), ínsitos no artigo 18.º, n.º 2, da CRP e 40.°, n.º 1, do CP. 16.° A adopção de crimes de perigo abstracto, embora “fosse susceptível à luz dos princípios jurídico-consti- tucionais da legalidade e da culpa”, implicaria para aqueles “a perda da sua dignidade penal e a descaracterização da sua relevância ético-social, tornando-se, então em meros Kavalliersdelikte , aos quais não se liga um autêntico juízo de desvalor e de censura e, por isso, nem sequer deviam constar de leis de carácter penal, mas sim de leis de mera ordenação social, de carácter não penal” (Lopes Rocha, Revista de Direito e Economia , 13 (1987), p. 243-4). 17.° Não se afigura possível identificar o cerne da legitimidade constitucional dos crimes de perigo abstracto, nomeadamente apelando para o eventual desvio ao cânone da proporcionalidade, nem à concreta determinação do seu sentido (ou ausência dele) violador do princípio da ofensividade. 18.° O carácter irrito da argumentação que pretende justificar os crimes de perigo abstracto no facto de, muito embora não sustentados na imediata protecção de um concreto bem jurídico, serem, ainda assim, meios aptos à protecção de bens jurídicos, acaba, no fundo, por os transmutar em verdadeiras e encapotadas medidas de segu- rança (aplicadas a imputáveis!). 19.° Nos crimes de perigo abstracto – como é o caso do artigo 292.º do CP – o agente é punido por mera desobediência e por subjectiva perigosidade, assim contendendo com o princípio da proporcionalidade originador e legitimador do ius puniendi estatal. 20.° Afigura-se, na maior parte dos casos, impossível, em matéria de crimes de perigo abstracto, proceder à sua justificação e ligação, ainda que através de um cuidado-de-perigo, com o qual se pretenda proteger um bem jurídico com dignidade penal, como serão, indirectamente, a vida humana, a integridade física e o património das pessoas em geral. 21.° O intérprete, perante um caso de “ imediato” enquadramento na dogmática dos crimes de perigo abstracto, tem de repensar o tipo perscrutando o seu interior, no sentido de o avaliar em função do princípio da ofensividade. Não basta o legislador definir com exactidão a conduta ou condutas proibidas, é preciso ainda e sempre, através da categoria de mediação do cuidado-de-perigo, ver se aquela conduta proibida visa proteger, se bem que por meio da mais avançada das defesas jurídico-constitucionalmente permitidas, um concreto e determinado bem jurídico com dignidade constitucional, rectius, um bem jurídico-penal. Dito isso, facilmente se verifica a ilegitimidade constitucional do actual recorte dado ao tipo legal de crime do artigo 292.º do CP. 22.° O actual recorte do tipo legal de crime do artigo 292.º do CP – crime de perigo abstracto – apenas encon­ trará a sua legitimação numa concepção do perigo como sendo de natureza “abstracto-concreto”, no sentido de ligar o tipo a um dado bem jurídico-penal constitucional e axiologicamente ancorado na Lei Fundamental, sob pena de violação do princípio da ofensividade e da proporcionalidade (sentido amplo), nos termos do artigo 18.°, n.º 2, da CRP 1976 e 40.°, n.º 1, do CP. Deste modo, tal não tendo ocorrido, a decisão judicial recorrida enferma de inconstitucionalidade e ilegalidade. 23.° O entendimento, subjacente ao acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de que crime de condução de veí- culo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto no artigo 292.º do CP, é de verificação formal, aplicação automática – havendo teste positivo de alcoolemia e/ou substâncias psicotrópicas – e dispensa a graduação da pena, à luz das finalidades (preventivas – geral de intimidação positiva e es- pecial de socialização positiva ou de prevenção da reincidência) das penas (artigo 40.° e 71.° do Código Penal e artigos 1.°, 13.° e 18.°, n.º 2, da CRP 1976), dentro da “moldura da prevenção”, afigura-se incompatível com o princípio da culpa, da proporcionalidade e da socialização que subjazem ao princípio do Estado de direito democrático assente no princípio da eminente dignidade da pessoa humana (artigos 1.° e 2.° da CRP 1976). Nesse sentido. 24.° O Tribunal Constitucional Espanhol, face à norma semelhante à do normativo português – artigo 379.º do CP Espanhol que correspondia ao anterior artigo 340.° bis a) 1 CP Espanhol e consagra o delito de conducción bajo el efecto de bebidas alcohólicas , na sua Sentença 2/2003, não considera preenchido o tipo legal apenas com o apontamento de uma dada taxa de alcoolemia. De facto, exige-se que o perigo “abstracto” seja “real”. Nesse sentido, refere o Tribunal Constitucional Espanhol, a dado passo da sua decisão judicial, o seguinte:

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=