TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 80.º Volume \ 2011

262 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL n.º 1, 19.°, n.º 1, 202.°, n.º 1 e 204.° da CRP 1976), nenhuma norma pode desrespeitar a CRP 1976, que possui seus princípios, e entre os quais, destaca-se o da ofensividade (ou Lesividade para Zaffaroni e Ferrrajoli): a conduta praticada pelo agente (guiar veículo a motor embriagado) deve afectar concretamente o bem jurídico tutelado pela norma, e na direcção embriagada, a objectividade jurídica é a segurança rodoviária, portanto, mesmo que tenha ingerido razoável quantidade de bebida alcoólica, se o condutor não afectar efectivamente a segurança rodoviária (bem jurídico), a conduta será atípica, pois, não pode existir crime sem lesão ou perigo concreto de lesão à objec- tividade jurídica, por força do reconhecido princípio do nullum crimen sine iniuria . 8.° Os critérios da validade para a construção de todos os concretos e específicos tipos legais de crime, aí incluídos os de perigo abstracto, implicam que a protecção de bens jurídicos apenas deva ocorrer face a condutas violadoras de bens jurídicos (-penais) com analógica referência axiológico-constitucional. 9.° A consistência teorética da punibilidade da criminalização das concretas situações de pôr-em-perigo, no caso do perigo surgir como “motivação do legislador” – como é caso no tipo legal de crime do artigo 292.º CP –, implica, na prática, a inexistência de qualquer “ofensividade” relativamente a um concreto bem jurídico, daí que o apelo aos bens jurídicos-penais da paz jurídica ou da segurança, para desempenharem um papel agregador de referências vinculantes, reconduzem-se a meros significantes de vaguíssima referência axiológica, desprovidos de conteúdos, de tal modo que tais valores nunca serão significados axiologicamente relevantes, porquanto também nunca ascenderão à dignidade de nódulos normativos susceptíveis de congregarem um sentido de desvalor (objec- tivo) que o ilícito-típico tem de comportar. 10.º Os crimes de perigo abstracto não são legítimas prefigurações delituais. De facto, eles mais não são do que uma figura insustentável dentro de uma visão centralizada unidimensionalmente na defesa e protecção de bens jurídicos. Não se nos afigura possível que dentro dos limites racionais da expansibilidade da postura que assentao eixo da punibilidade no bem jurídico, que a fundamentação dos crimes de perigo abstracto ainda se possa recon- duzir à protecção de um qualquer bem jurídico. No máximo, pode-se detectar um “halo” do bem jurídico a pro- teger ou protegido, “halo” esse que só muito dificilmente é referenciável ao bem jurídico e ao qual a comunidade jurídica concede a dignidade da protecção penal. 11.º A relação onto-antropológica de cuidado-de-perigo do “eu” com o “outro”, ao nível do tipo legal de crime do artigo 292.º CP, não chega a ganhar uma natural expressão que seria mediatizada pela concreta existência de um qualquer bem jurídico. Se é certo que a relação de cuidado-de-perigo ínsita nos crimes de perigo abstracto se funda, ainda e sempre, naquela primitiva relação de cuidado que legitima o próprio Estado, o certo é que não se exigindo a presença imediata de um bem jurídico que tutele, tal poder incriminador do Estado se encontra demasiado “solto”, sem limites “materiais”, a não ser, obviamente, pelos limites oriundos dos princípios da legalidade (estrita) e da irretroactividade lei penal, daí a sua difícil aceitação à luz do paradigma da ponderação constitucional codificado em sede processual penal. 12.° Exige-se, por isso, uma mais densificada legitimação para a actividade legiferante, em sede de crime de perigo abstracto. Ora, dificilmente tal legitimação ainda se pode perscrutar na relação de cuidado-de-perigo origi- nariamente fundada de todo o ius puniendi. Só a custo os crimes de perigo abstracto podem fundar-se na relação onto-antropológica de cuidado-de-perigo. 13.° Importa notar que é diferente um condutor, com álcool no sangue, guiar o seu automóvel aos ziguezagues e guiá-lo, não obstante o álcool, ainda com capacidade de avaliar os hipotéticos prejuízos que possa causar. As situações descritas são diferentes e são assim valoradas de modo diferenciado pela comunidade, atribuindo-se um distinto desvalor a um e outro comportamento. 14.° Os crimes de perigo abstracto – como é o caso do artigo 292.º do CP – configuram uma verdadeira e inadmissível “ficção do ilícito” e, enquanto tal, inadmissível à luz dos princípios que enformam a legitimação da tutela penal (princípio da proporcionalidade em sentido amplo: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito – artigo 18.°, n.º 2, da CRP 1976). 15.° Prever, no domínio estradal – como no domínio económico, como bem sublinhava Eduardo Correia (Ciclo Estudos, CEJ, 18-23) –, “ uma pena de prisão para um mero crime de perigo abstracto não respeita a proporcio- nalidade exigida no artigo 88.º da nossa Lei fundamental [hoje: artigo 18.°, n.º 2, da CRP 1976], e, portanto,

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