TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 80.º Volume \ 2011
25 acórdão n.º 214/11 Com efeito, enquanto instrumento de inibição da actuação dos poderes públicos, através do modelo tradicional de checks and balances , em salvaguarda da liberdade individual dos cidadãos – a chamada dimen são negativa do princípio da separação de poderes –, o princípio cedeu campo operativo a um conjunto de institutos garantidores dos preceitos materiais da Constituição e dos direitos, liberdades e garantias. Designadamente, centrando desde já a atenção no âmbito relacional entre o poder legislativo do Parlamento e o poder executivo porque é nesse âmbito que se situa a questão que o Tribunal tem para resolver, perante a aplicabilidade directa dos direitos fundamentais e a tendencial plenitude de acesso ao direito e aos tribunais para protecção contra qualquer lesão dos direitos e interesses individuais, incluindo a garantia de tutela juris dicional efectiva dos direitos e garantias dos administrados. A maior virtualidade ou dimensão operativa do princípio, ao menos em termos de justiciabilidade – o que, num sistema de justiça constitucional como a portuguesa, releva pela via da apreciação de constitucio- nalidade de normas jurídicas – é a que respeita à sua dimensão de elemento de interpretação e de delimitação funcional das normas constitucionais de competência no sentido da racionalização do exercício das funções do Estado. Nesta sua dimensão positiva, o princípio da separação de poderes “assegura uma justa e adequada ordenação das funções do Estado e, consequentemente, intervém como esquema relacional de competências, tarefas, funções e responsabilidades dos órgãos constitucionais de soberania” (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Almedina, 2003, p. 250). Como diz Jorge Reis Novais, Separação de Poderes e Limites da Competência Legislativa da Assembleia da República, Lisboa, 1997, p. 37, o princípio “é hoje essencialmente invocável na praxis jurídica no seu significado de princípio organizatório estruturante de uma organização racional dos poderes do Estado”. Não, obviamente, de uma racionalidade aprioristicamente concebida, mas daquela racionalidade que está presente na distribuição de competências constitucionais para prossecução das funções do Estado pelos diversos órgãos de soberania (“… a separação e interdependência estabelecidos na Constituição”), de modo que no binómio separação‑interdependência possa sobreviver o núcleo essencial das atribuições e responsabi- lidade constitucional de cada um deles. No essencial, o princípio significa “ordenação adequada de funções, proibição da confusão e da diluição dos nexos de imputação e responsabilidade” (Assunção Esteves, “Os limites do poder do Parlamento e o procedimento decisório da co-incineração”, in Estudos de Direito Cons- titucional , Coimbra, 2001, p. 17). Postas estas genéricas considerações quanto ao seu alcance, da constelação problemática que o referido princípio convoca, no presente pedido de fiscalização preventiva de constitucionalidade interessa, apenas, o que respeita às relações entre o poder legislativo do Parlamento e o poder regulamentar do Governo no domínio do regime da função pública. É este o horizonte de referência da apreciação que se segue. 10. No artigo 3.º do Decreto n.º 84/XI, a Assembleia da República pretende revogar o Decreto Regu- lamentar n.º 2/2010. Não põe o Tribunal em dúvida, como o Presidente da República não põe, que um acto de natureza regulamentar possa ser revogado por um acto de natureza legislativa. Não estando em causa um acto pro- vindo de um órgão integrado na administração autónoma, em que da autonomia normativa podem decor- rer limites ao poder regulador e consequentemente também ao poder revogatório do legislador (cfr. J. C. Vieira de Andrade, “Autonomia regulamentar e reserva de lei”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Afonso RodriguesQueiró , I, Coimbra, 1984, p. 21; Vital Moreira, Auto-Regulação Profissional e Administração Pública , Almedina, 1997, pp. 186 a 191 e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Por- tuguesa Anotada , II Vol., 4.ª edição, Coimbra Editora, 2010, p. 71), essa aptidão é inerente ao princípio da hierarquia das fontes normativas implícito no artigo 112.º da Constituição. E, como o pedido reconhece, também não é questionável esse poder revogatório do Parlamento, através de acto legislativo, mediante a mera afirmação de uma reserva de regulamento por parte do Governo, que assimseria invadida.
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