TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 80.º Volume \ 2011
249 acórdão n.º 90/11 da limitação à divulgação da palavra, atinentes à salvaguarda das condições de uma boa administração da justiça, perdem o seu peso. Nestas circunstâncias, a utilização, numa reportagem televisiva, de som gravado de uma audiência de julgamento, já não pode ter impacto no seu desenrolar, nem produzir “ruído externo” perturbador do funcionamento do aparelho judiciário num clima de serenidade, favorável a um desempenho funcional adequado dos decisores judiciais. É incontroverso que a difusão desse som, qualquer que seja o efeito que, com ela, se pretenda obter, já não é susceptível de influenciar, de modo nefasto, o decurso e o resultado do julgamento nele reproduzido. Quando muito, se à reportagem presidir uma intencionalidade crítica, a utilização do registo sonoro do julgamento (ou de parte deste) pode contribuir para criar ou reforçar, junto da opinião pública, uma imagem negativa do funcionamento do sistema judicial. O conhecimento, com a decorrente possibilidade de controlo, da forma como o poder jurisdicional exerce as funções soberanas que lhe são cometidas, de “administrar a justiça em nome do povo” (artigo 202.º, n.º 1, da CRP), é da essência do Estado de direito democrático (artigo 2.º). Nas sociedades modernas, esse conhecimento não prescinde da publicidade mediata que só os órgãos de comunicação social podem assegurar (cfr. Jorge Baptista Gonçalves, ob. cit ., p. 90). Operando como os “olhos e ouvidos do público em geral” (Jónatas Machado, ob. cit. , p. 569), aos profissionais desses órgãos cabe o papel insubstituível de, transcendendo o apertado círculo do testemunho presencial, facultado pelo acesso dos interessados à sala de audiências, que o princípio da publicidade processual garante, trazer a actuação dos tribunais para a esfera pública, em toda a dimensão desta. Por isso mesmo, pelo papel que detém, no plano objectivo e institucional, de condição de controlo de exercício dos poderes públicos, incluindo o de administração da justiça, a liberdade de imprensa e meios de comunicação social goza de específica e qualificada consagração constitucional (artigo 38.º). Liberdade que é garantida na multiplicidade das suas implicações, aí abrangida a “liberdade de expressão e criação dos jornalistas” [n.º 2, alínea a) , daquele preceito], naturalmente referível, tanto a conteúdos, como a formas e instrumentos de comunicação. Contudo, se após o decurso da audiência de julgamento e da prolação de sentença parte das razões atinentes à salvaguarda das condições de uma boa administração da justiça perdem a sua razão de ser, sendo também de valorizar razões de controlo e publicidade do exercício do poder jurisdicional, haverá ainda outrasrazões que persistam para justificar a limitação imposta à divulgação do som gravado da audiência. 12. Na particular configuração da questão de constitucionalidade que nos é posta mantém-se presente um outro campo de valoração conflitual, aparentemente apenas centrado na protecção dos direitos funda- mentais dos intervenientes no processo, mas que, como assinalaremos, se justifica, também, na relação com a boa administração da justiça. Dado que a sentença recorrida penalizou a utilização televisiva de um registo magnético da audiência de julgamento, está em causa, desde logo, o direito à palavra. A palavra falada integra expressamente o amplo e denso universo de bens pessoais protegidos pelo artigo 26.º da CRP, pois também pela palavra se exprime e define a individualidade própria de cada pessoa. Ela constitui, nesse sentido, um autónomo bem da per- sonalidade. O conteúdo do direito à palavra abrange, em princípio, tanto a permissão de gravação, por outrem, da voz do titular, como a decisão quanto à utilização da voz gravada. Compete ao próprio definir não só o se da gravação, mas também o como e o quando da audição futura da voz, isto é, em que condições, perante quem e em que contexto situacional ela pode voltar a ser ouvida. No caso dos autos, porém, a primeira dimensão garantística do direito à palavra está prejudicada, porque a gravação dos depoimentos de todos os sujeitos intervenientes na audiência de julgamento está prescrita na lei do processo, visando acautelar um eventual recurso da matéria de facto. Na prossecução de fins legíti- mos, inerentes à própria administração da justiça, de acordo com a tramitação processual fixada, a gravação impõe-se a esses sujeitos, não ficando na sua livre autodeterminação uma decisão a tal respeito.
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