TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 79.º Volume \ 2010

374 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Numa concepção extremada, fundada na ideia de que a função dos direitos fundamentais é a defesada dignidade humana contra os poderes públicos, essa possibilidade estaria logicamente excluída. Esta concepção tem sido atenuada, como refere Vieira de Andrade ( Os Direitos Fundamentais na Constituição da República Portuguesa de 1976, 4.ª edição, pp. 122 e segs.), seja a partir de uma concepção dos direitos fundamen- tais menos centrada no indivíduo, seja perante a progressiva pulverização organizatória da Administração Pública. Alguma doutrina, pelo menos quanto a certas pessoas colectivas de direito público que prosseguem interesses constitucionalmente autonomizados (por exemplo as universidades, as autarquias locais), ou tam- bém dos indivíduos associativamente organizados (por exemplo, as ordens profissionais), advoga o reconhe- cimento da titularidade de alguns direitos fundamentais (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.º edição, p. 422). Mas, ainda que nessas situações seja aceitável a atribuição da titularidade de direitos fundamentais a pessoas colectivas dessa natureza, por estar em jogo a defesa de valores ou bens de carácter pessoal perante o poder – todavia, é legítima a interrogação sobre se não será mais adequado conce- ber essas situações como garantias institucionais ou normas de atribuição constitucional de competências –, já descaracterizaria o étimo fundante dos direitos fundamentais atribuí-los a pessoas colectivas que são meros instrumentos do Estado-Administração, sem qualquer substracto individual relativamente ao qual expressem uma esfera de liberdade. As empresas públicas, ainda quando se constituem sob forma privada e se regem pelo direito privado, actuando sem poderes de autoridade, são o instrumento (um dos instrumentos) de que o Estado se serve para prosseguir a sua acção, tendo uma esfera de direitos que encontra fundamento na missão ou nas atribuições que este lhes confere, nunca na ideia de liberdade ou de autonomia. O Estado ( lato sensu ) funcionaliza a personalidade jurídica dessas empresas, servindo-se delas como instrumento de prossecução das suas tarefas e incumbências. Trata-se de uma personalidade jurídica sem um substrato ôntico exterior ao ente de que constitui longa manus . Não é concebível que possam triunfantemente opor direitos originários ao legislador, que é livre de as instituir e competente para moldar a esfera de acção e os fins que lhes comete. A sua acção desenvolve-se com fundamento na lei e nas competências públicas e não na autonomia e na liberdade. Diver­ samente do que sucede com as pessoas colectivas privadas (sociedades comerciais, associações, fundações) que, em último termo, são instrumento dos indivíduos que põem em comum o seu esforço ou os seus capi- tais para prosseguirem, autónoma e livremente, a acção que por essa técnica jurídica projectam ou poten- ciam. Só porque (e quando) a formação e a actividade de uma pessoa colectiva seja a manifestação do livre desenvolvimento dos indivíduos tem sentido atribuir-lhe direitos fundamentais. É na medida em que, para lá do véu da personalidade jurídica, se descobrem os direitos das pessoas humanas que as integram ou cujos interesses prosseguem, que o artigo 12.º da Constituição reconhece a titularidade de direitos fundamentais por pessoas colectivas. Para quem perfilhe esta perspectiva, não se verá razão para que o Estado legislador haja de ficar vincu- lado por direitos fundamentais das organizações que ele próprio é livre de criar por entender ser o instru- mento jurídico-organizatório mais adequado para prosseguir fins próprios ou tarefas da Administração. Será desconforme com essa natureza instrumental concebê-las como titulares de direitos oponíveis ao legislador, mormente quando essa limitação possa sacrificar, colidir ou comprimir a optimização de princípios desti- nados a assegurar direitos dos cidadãos, sob pena de a empresarialização das tarefas administrativas mais do que uma “fuga ao direito administrativo” redundar numa “fuga ao direito constitucional” com sacrifício das garantias dos administrados. Posta esta reserva, nada obsta a que certas pretensões de defesa típicas de direitos (subjectivos) fundamen- tais (por exemplo, os direitos fundamentais processuais, cujo reconhecimento às pessoas colectivas é gene­ ralizadamente aceite, mas que também podem ser vistos como princípios objectivos do procedimento, desti- nados a assegurar o correcto cumprimento da função judicial num Estado de direito; cfr. José Manuel Díaz Lemo, “Tienen Derechos Fundamentales las Personas Juridico-Publicas”, in Revista de Adminstração Pública, n.º 120, p. 118) sejam absorvíveis pelo princípio do Estado de direito e pelas garantias institucionais que limitam objectivamente a discricionariedade legislativa. Com efeito, as normas que estabelecem direitos fundamentais consagram também valores constitucionais objectivos que moldam a ordem jurídica e que o legislador tem de

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