TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 79.º Volume \ 2010
288 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Determina este preceito que “os funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas são responsáveis civil, criminal e disciplinarmente pelas acções e omissões praticadas no exercício das suas fun- ções e por causa desse exercício de que resulte violação dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos (...)”. Nesta disposição reflecte-se o princípio da responsabilidade subjectiva dos funcionários ou agentes do Estado pela violação, no exercício das suas funções, dos direitos dos cidadãos, como forma de garantia dos princípios da legalidade e da eficiência administrativa, estimulando a diligência dos servidores do Estado e assegurando protecção preventiva e reparadora aos direitos dos cidadãos. A consagração dos regimes destas diferentes responsabilidades, efectuada pelo legislador ordinário, em obediência ao citado ditame constitucional, deve ser feita com respeito pelos princípios enformadores dos respectivos institutos. Relativamente à responsabilidade criminal, há que ter em consideração que o direito penal cumpre uma função de ultima ratio , só se justificando a sua intervenção para proteger bens jurídicos se não for pos- sível o recurso a outras medidas de política social, igualmente eficazes, mas menos graves do que as sanções criminais, só se impondo a criminalização quando manifestamente a gravidade da conduta reclama a inter- venção do direito penal. Como se disse no Acórdão n.º 99/02, deste Tribunal, «[...] as medidas penais só são constitucionalmente admissíveis quando sejam necessárias, adequadas e proporcionadas à protecção de determinado direito ou interesse constitucionalmente protegido, e só serão constitucionalmente exigíveis quando se trate de proteger um direito ou bem constitucional de primeira importância e essa protecção não possa ser suficiente e adequadamente garantida de outro modo.» (em Acórdãos do Tribunal Constitucional , 52.º Vol., p. 457). Ora, face à ampla liberdade de conformação do legislador ordinário, constitucionalmente permitida neste domínio, há que concluir que não é forçoso, nem decorre do imperativo constitucional contido no artigo 271.º, n.º 1, da Constituição que todo e qualquer acto praticado por funcionário no âmbito de pro- cedimento administrativo gracioso de que resulte violação de direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos tenha que desencadear a responsabilidade criminal desse funcionário, designadamente a tipificada no artigo 369.º do Código Penal. Se é certo que a tipificação em causa se enquadra num sector, mais amplo, dos crimes de funcionários, em que o factor de união reside na violação dos deveres funcionais decorrentes do cargo desempenhado (designa damente, os crimes previstos nos artigos 372.º a 385.º do Código Penal – cfr. Capítulo IV, do Título V, da Parte Especial, respeitante aos “crimes cometidos no exercício de funções públicas”), a doutrina dominante identifica o específico bem jurídico protegido por este tipo legal de crime com a realização da justiça. Neste mesmo sen- tido, A. Medina Seiça ( ob. cit., pp. 609-610), aderindo à opinião de Rudolphi, acrescenta que «(…) este tipo de crime pretende assegurar o domínio ou supremacia do direito objectivo na sua aplicação pelos órgãosda admi- nistração da justiça, maxime judicias (…). É esta perversão ad imo – transformação do direito em injusto por parte de quem é chamado a servir de garante institucional à própria Ordem Jurídica – que convoca a particular censura da norma incriminadora”).» Ora, não se inserindo o processo administrativo gracioso na actividade judicial do Estado, não se revela arbitrária e sem sentido a exclusão dos actos praticados pelos funcionários nesse tipo de processo do tipo legal de crime previsto no artigo 369.º do Código Penal. Assim, a interpretação seguida na decisão recorrida, no sentido de que os actos praticados por funcionário no âmbito de processo administrativo gracioso, donde resulte violação de direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, não integram a previsão do tipo legal de crime de denegação de justiça, previsto e punido no artigo 369.º, n. os 1 e 2, do Código Penal, não cria uma lacuna de punibilidade relativamente a essas condutas, até porque essa exclusão não significa que elas estarão a salvo de qualquer responsabilidade criminal, uma vez que sempre poderão ser criminalmente puníveis, desde que integrem os pressupostos de um qualquer outro tipo legal de crime que tenha, também, como traço característico, a qualidade de fun- cionário do agente (designadamente, os crimes previstos nos referidos artigos 372.º e segs. do Código Penal).
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