TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 79.º Volume \ 2010
250 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Já o eventual interesse daquele que é tido como filho em manter esse estatuto não pode ser inteiramente desconsiderado (como seria com um regime de imprescritibilidade). Sobretudo quando o vínculo jurídico tem tradução consistente no “mundo da vida” familiar e social, gerando, como é normal, laços afectivos, a destruição retrospectiva desse vínculo acarreta (ou agrava) a perda de sentido de uma componente nuclear da memória e da historicidade pessoais, da auto-representação de si, por parte de quem é filho. Valores também situados na esfera da identidade pessoal podem ser invocados em tutela do interesse do outro sujeito da rela- ção paterno-filial em ver como definitivamente adquirido o estatuto de que goza, após o decurso de um certo prazo em que o pai teve efectiva oportunidade de o impugnar judicialmente. Outros factores de identidade pessoal podem sobrepor-se, na óptica do filho, aos de ordem genética, não podendo ser dado por seguro que o seu interesse, mesmo excluindo dimensões patrimoniais, corresponda sempre à coincidência entre o vínculo jurídico e o biológico. Esse interesse, quando exista, é, aliás, susceptível de ser autonomamente exer- citado, pois ao filho é reconhecida legitimidade própria para impugnar [alínea c) do n.º 1 do artigo 1842.º]. 12. Acresce um outro elemento diferenciador, respeitante ao termo inicial do prazo de caducidade, tam- bém ele contribuindo para evidenciar que não há paridade entre a previsão do n.º 1 do artigo 1817.º e a da alínea a) do n.º 1 do artigo 1842.º, por um lado, e fornecendo, por outro, uma razão adicional justificativa desta última norma. Temos em mente o segmento, já constante da versão anterior e mantido, nos mesmos termos, na re- dacção da Lei n.º 14/2009, segundo o qual o prazo se começa a contar desde que o marido “teve conhe- cimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade”. Resulta daqui que o início de contagem não se dá por referência ao momento de verificação de um evento externo (o nascimento do filho, por exemplo, como noutras legislações), mas só se produz com a cognição, na esfera subjectiva do marido da mãe, de factos indiciadores da sua não paternidade. E note-se que se exige o efectivo conhecimento desses factos, não se contentando a lei com a sua cognoscibilidade. Só quanto ao alcance negatório do vínculo bio lógico que seja de conferir a esses factos está o intérprete habilitado a formar um juízo objectivo (quanto à possibilidade de, a partir deles, se concluir pela não paternidade). Este regime autoriza a atribuir valor significante à inércia do pai presumido, em sentido abdicativo do direito a impugnar, ou, no mínimo, a dirigir-lhe uma imputação de auto-responsabilidade. Com a fixação de um termo inicial subjectivo (logo, acolhedor das variáveis casuísticas) e a não consagração de um prazo máximo objectivo fica garantido o que, pelo menos neste âmbito, é essencial: a concessão de uma opor- tunidade real ao pretenso pai de averiguar, pelos trâmites processuais adequados, se o vínculo corresponde à realidade biológica, e de se libertar dele, em caso negativo. Se lhe chegam ao conhecimento (em qualquer momento) dados que lhe permitiriam duvidar seriamente da existência de um vínculo natural e ele nada faz, em prazo legal que só decorre a partir desse momento e possa ser tido de duração suficientemente adequada, sibi imputet , extinguindo-se, por força desse comportamento conscientemente omissivo (não pelo decurso de um prazo objectivo), o direito de impugnar a presunção de paternidade. São aqui inteiramente válidas as considerações expendidas no Acórdão n.º 626/09, a propósito do prazo, também subjectivo, do n.º 3 do artigo 1817.º, no sentido de que «tendo o titular deste direito con- hecimento dos factos que lhe permitem exercê-lo é legítimo que o legislador estabeleça um prazo para a propositura da respectiva acção, após esse conhecimento, de modo a que o interesse da segurança jurídica não possa ser posto em causa por uma atitude desinteressada daquele». Em matéria que contende com o estado civil de um outro, estando em causa um vínculo estabelecido, constitutivo da personalidade, não só do impugnante, como também do filho, não é injustificado nem excessivo fazer recair sobre o pai um ónus de diligência quanto à iniciativa processual para apuramento definitivo da filiação (para o que hoje existem meios peremptoriamente concludentes), não fazendo prolongar, através de um regime de imprescritibili- dade, uma situação de incerteza indesejável. Essa tem sido também a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que, no caso Rasmussencontra Dinamarca, em sentença de 28 de Novembro de 1984, decidiu que, em acções de
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