TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 79.º Volume \ 2010
120 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Como começou por referir-se, a Lei n.º 23/96 institui diversos mecanismos de protecção dos utentes dos serviços públicos essenciais e rege as relações entre o prestador do serviço e utente, independentemente da natureza jurídica (individual ou colectiva) deste e da finalidade de utilização do serviço em causa (do- méstico, industrial, comercial, actividade profissional de prestação de serviços). Protege o utente (n.º 1 do artigo 1.º), qualquer utente dos serviços públicos essenciais, tendo um âmbito subjectivo mais vasto do que o de aplicação da Lei de Defesa dos Consumidores (artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho), cuja finalidade é assegurar protecção aos interesses do consumidor final enquanto tal, aquele que adquire a fornecedores profissionais bens e serviços para uso e fruição própria e não para uso profissional. Quer dizer: os utentes a que a Lei n.º 23/96 se refere são também esses consumidores em sentido estrito; mas não são apenas eles. Um dos pontos regulados na Lei n.º 23/96 – e foi sobre ele que incidiu a controvérsia na acção de que o presente recurso emerge, só ele reclamando a nossa atenção – é o dos prazos de exercício dos direitos de crédito do fornecedor. Quer para o direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado, quer para a exigência da diferença entre o preço facturado e o preço correspondente ao consumo efectuado, em caso de erro do prestador do serviço nessa facturação ( v. g. por deficiência dos instrumentos de contagem, por erro de leitura, de processamento ou de cálculo), a lei estabelece um prazo curto de 6 meses, qualificado como de prescrição no primeiro caso e de caducidade no segundo. Há, portanto, um regime especial, que afasta as regras gerais do Código Civil, no domínio dos serviços essenciais regulados no diploma. Porém, quanto ao serviço de fornecimento de energia eléctrica, o n.º 3 do artigo 10.º (actualmente, o n.º 5 do mesmo artigo 10.º), exclui do âmbito deste regime especial quanto ao exercício dos direitos de crédito do prestador do serviço o fornecimento em “alta tensão”. Por via desta excepção, desta única excepção ao regime especial estabelecido pelo diploma, as relações entre essa categoria de utentes e o fornecedor, em matéria de prescrição e caducidade, retornam à disciplina constante das regras gerais da lei civil e comercial. O acórdão recorrido interpretou esta norma, definiu a extensão da excepção ao regime especial, como não abrangendo o fornecimento de serviço em “média tensão”. Contra a pretensão da recorrente que advoga uma interpretação que equivale a contrapor “alta tensão” a “baixa tensão”. Aceitando, como tem de aceitar-se no presente recurso, que essa é a correcta determinação de sentido da norma, importa apreciar se, ao assim distinguir entre utentes em “média tensão” e utentes em “alta tensão”, o legislador violou a Constituição, por infracção aos princípios da proporcionalidade e da igualdade, como a recorrente sustenta, apoiada em pareceres jurídicos que juntou aos autos ainda em fase anterior do processo. A esses parâmetros vai o Tribunal limitar a apreciação da constitucionalidade da norma em causa. Com efeito, não há razão para outras ponderações, designadamente respeitante à protecção constitucional dos consumidores, parâmetro que não é aqui aplicável porque o artigo 60.º da Constituição tem em vista, à semelhança do direito nacional e europeu, o consumidor final (neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição, p. 780). Efectivamente, a norma em causa respeita ao fornecimento de energia eléctrica para uso industrial e comercial. E é do comum conhecimento que os utentes em “alta” ou em “média” tensão não são consumidores finais, nesse sentido. 7. Como no primeiro dos pareceres jurídicos juntos aos autos se defende e o acórdão recorrido igual- mente aceita, ao determinar que, no caso do fornecimento de energia em “alta tensão”, não se aplica o regime especial que tutela o utente contra pretensões de correcção da facturação por erro do prestador do serviço, o legislador pressupôs que os utentes da categoria referenciada, ao contrário dos restantes utentes, estão em condições de gerir essa situação, sem dificuldades excessivas, pelo que o equilíbrio entre as exigência de con- solidação da situação (favorável ao consumidor) e, portanto, de segurança jurídica, e as exigências de justiça (reclamada pelo prestador que prestou o serviço ou efectuou o fornecimento e pretende receber o preço) se alcançava, neste caso, por aplicação do regime geral da lei civil e comercial. Quer dizer, ao apontar como elemento definidor do âmbito da exclusão uma certa categoria de tensão de energia eléctrica, o legislador está indirectamente a remeter para o círculo dos sujeitos que a utilizam, tendo em conta as características típicas da sua estrutura patrimonial e organizatória e o modo como nela se inserem os gastos com o consumo de
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