TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 79.º Volume \ 2010
112 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL interesses primários dos sujeitos em relação, e muito especialmente do inquilino – matéria de particular melindre político-social, cuja regulação o legislador constituinte quis manter sob a alçada, de forma directa ou indirecta, do órgão de representação da vontade popular. Importa, pois, averiguar, se, no caso, existiu lei habilitante e, se assim foi, se as soluções consagradas se conti- veram dentro dos limites da autorização legislativa. 8. (…) Da simples leitura, salta à vista que o conteúdo do Decreto-Lei n.º 157/2006 é mais extenso do que o enun- ciado na norma de autorização legislativa: enquanto que esta, para o que ora interessa, define como objecto do acto autorizado apenas o “regime jurídico das obras coercivas” [alínea a) do n.º 1 do artigo 63.º da Lei n.º 6/2006], o diploma que exercita a autorização consagra, para além deste regime, o atinente à denúncia ou suspensão do con- trato de arrendamento e à denúncia por edificação em prédio rústico arrendado. É manifesto que estes dois regimes extravasam da matéria definida na norma habilitante como objecto de autorização. Na verdade, este reporta-se a obras coercivas, o mesmo é dizer, a obras que não resultam da iniciativa e da vontade do senhorio, visando, justamente, suprir a inércia deste na sua realização. A denúncia ou suspensão do contrato de arrendamento, pelo contrário, são soluções facultadas, em certos termos, ao senhorio, quando é ele a tomar a iniciativa de obras de remodelação ou restauro profundos, ou de demolição. Trata-se, é bom de ver, de vicissitudes contratuais distintas, de que promanam consequências de tipo completamente diferente. E a autono- mia substancial da previsão de extinção ou suspensão dos efeitos do contrato, em face da matéria da realização de obras coercivas, espelha-se bem, a nível formal e sistemático, não só na enunciação em separado, na norma defini- dora do objecto (artigo 1.º), dos dois segmentos normativos, como também na localização da disciplina respeitante a cada um deles em subsecção própria. É inevitável retirar a conclusão de que o regime de denúncia ou suspensão do contrato de arrendamento, constante do Decreto-Lei n.º 157/2006, inovador e de sentido não coincidente com o disposto na Lei n.º 2088, de 3 de Junho de 1957, foi emitido sem credencial parlamentar bastante, que habilitasse o Governo a tomar uma iniciativa legislativa com esse conteúdo. De entre os limites que as leis de autorização legislativa, de acordo com o n.º 2 do artigo 165.º da CRP, fixam aos diplomas autorizados, o vício dá-se logo no primeiro deles, pela não coincidência, nessa parte, do objecto sobre que recai o decreto-lei em causa e aquele individualizado no artigo 63.º, n.º 1, alínea a) , da Lei n.º 6/2006. 9. Esta conclusão não é infirmada, nem sequer abalada, pelo facto de o artigo 1103.º, n.º 8, do Código Civil, posto em vigor pela Lei n.º 6/2006, prever o seguinte: “A denúncia do contrato para demolição ou realização de obra de remodelação ou restauro profundos é objecto de legislação especial.” Na verdade, esta norma tem uma natureza e uma função puramente remissivas e integradoras, não podendo, de forma alguma, ser tida como operando uma delegação de competência para uma intervenção legislativa gover namental, neste domínio. Sendo assim, ao ser tomada a opção de editar tal “legislação especial” sob a forma de decreto-lei, o Governo não estava dispensado, naturalmente, de obter a prévia autorização legislativa da Assembleia da República, como suporte legitimador dessa actividade legiferante e parâmetro de validade das soluções, dela advenientes, que se integram no regime geral do arrendamento urbano. De resto, a qualificar-se aquela norma como de autorização legislativa – o que já vimos, não corresponde ao seu alcance, e só por escrúpulo de completude argumentativa agora se perspectiva – ela não preencheria minima- mente os requisitos substanciais da sua validade constitucional, já que se limita a enunciar uma área de interven- ção – a facultação ao senhorio de um direito extintivo do contrato com um determinado objectivo –, sem nada definir quanto aos seus pressupostos materiais, as medidas compensatórias em tutela dos interesses do inquilino e a orientação a seguir quanto à disciplina de outros aspectos relevantes da situação. Tratar-se-ia de um verdadeiro “cheque em branco” endossado ao legislador, quando é certo que, como oportunamente salienta Jorge Miranda, “autorizações em branco ou globais subverteriam a distribuição constitucional de competências” (Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada , II, Coimbra, p. 539).
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