TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 79.º Volume \ 2010

100 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL DECLARAÇÃO DE VOTO À noção de Estado é inerente o poder de lançar impostos, como manifestação de soberania, visando o financiamento das despesas da sua estrutura e o desenvolvimento das suas políticas sociais. A obrigação fiscal nasce por isso por simples iniciativa dos órgãos do Estado e tem repercussões ablativas no património dos cidadãos. Perante um longo passado de abusos e arbitrariedades no lançamento e cobrança de impostos, a introdução do princípio da legalidade nesta matéria veio conferir-lhe um estatuto de cidadania no mundo do Direito. Para que o Estado possa cobrar um imposto ele terá que ser previamente aprovado pelos representantes do povo e terá que estar perfeitamente determinado em lei geral e abstracta. Só assim se evitará que esse poder possa ser exercido de forma abusiva e arbitrária, indigna de um verdadeiro Estado de direito. E nos casos em que o imposto aprovado pelo parlamento incida sobre rendimentos obtidos pelo contri- buinte, o mesmo princípio da legalidade não poderá deixar de exigir que ele só possa atingir os rendimentos que o contribuinte venha a auferir após a entrada em vigor da lei. Na verdade, caso se permitisse que a lei tributária dispusesse para o passado, com efeitos retroactivos, prevendo a tributação de actos praticados quando ela ainda não existia, estaria a permitir-se que o Estado impusesse determinadas consequências a uma realidade, posteriormente a ela se ter verificado, sem que os seus actores tivessem podido adequar a sua actuação de acordo com as novas regras. Esta exigência revela as preocupações do princípio da protecção da confiança dos cidadãos, também ele princípio estruturante do Estado de direito democrático, reflectidas na vertente do princípio da legalidade, segundo a qual, a lei, numa atitude de lealdade com os seus destinatários, só deve reger para o futuro. Em matéria fiscal, tal como em matéria penal, apesar das conhecidas diferenças de valoração dos interes­ ses perseguidos, só o estrito e absoluto respeito por estas ideias garantirá uma relação íntegra e leal entre o cidadão e o Estado, que permitirá a este a utilização da designação de Estado de direito democrático. É nesse sentido que deve ser lida a introdução pelo legislador constituinte, na revisão de 1997, da regra da proibição da criação de impostos com natureza retroactiva ( nullum tributum sine lege praevia ), no artigo 103.º, n.º 3. Não se visou explicitar uma simples refracção do princípio geral da protecção da confiança dos cidadãos, inerente a toda a actividade do Estado de direito democrático, mas sim expressar, numa matéria nevrálgica, uma regra absoluta de definição do âmbito de validade temporal das leis criadoras ou agravadoras de impos- tos, prevenindo, assim, a existência de um perigo abstracto de grave violação daquela confiança. Não há, pois, que efectuar, em qualquer caso, um juízo de proporcionalidade relativamente a qualquer medida legislativa com eficácia retroactiva, para verificar se a mesma afecta desrazoavelmente a confiança dos cidadãos, estando essa validade temporal absolutamente proibida pela regra inserida no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição. É certo que os trabalhos preparatórios desta reforma do texto constitucional evidenciam que alguns dos parlamentares que intervieram naquele processo de revisão constitucional, numa atitude de condescendência com situações de atraso na aprovação do orçamento anual, não pretenderam abranger com esta proibição as situações de alteração das taxas de imposto relativas ao ano em curso, no que diz respeito aos impostos sobre o rendimento, como é caso do IRS, mesmo quando essa alteração fosse desfavorável ao contribuinte. Con- tudo essa excepção não ficou expressa no texto constitucional, pelo que o intérprete goza de ampla liberdade na definição do âmbito da proibição constitucional da retroactividade da lei fiscal. Ora, face às razões e princípios que cimentam esta regra, não é possível estabelecer qualquer distinção entre a lei que cria um novo imposto e a lei que altera a taxa de um imposto já existente em desfavor do con- tribuinte. Em ambas as situações se estabelecem consequências danosas para o património deste para actos ocorridos em data anterior à previsão por lei dessas consequências, em manifesto desrespeito pela lealdade que deve, necessariamente, caracterizar as relações entre um Estado de direito democrático e os seus cidadãos. Do mesmo modo não se justifica, como faz o presente acórdão, exportar para este domínio a distinção entre retroactividade autêntica e inautêntica, uma vez que o que releva, face aos princípios constitucionais

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