TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010

99 ACÓRDÃO N.º 121/10 Resulta líquido, a meu ver, que o constituinte de 1976 tinha em mente o casamento entre pessoas de sexo diferente quando redigiu o artigo 36.º Não só porque esse era o conceito que resultava então como dominante – e o diálogo com a história e com a tradição é nota característica de qualquer acquis constitucional – mas também porque se assim não fosse então ter-se-ia verificado necessariamente, em 1977, a alteração dos pre- ceitos relevantes do Código Civil de modo a garantir que a legislação ordinária acomodava a nova concepção constitucional. Isso foi o que sucedeu, aliás, com matérias relativas à filiação e à igualdade entre os cônjuges. Esta conclusão sai reforçada em face da integração do preceito no todo corpóreo do artigo 36.º Com efeito, esta norma constitucional consagra “no texto fundamental a ligação profunda entre casamento e filiação”, como aliás resulta dos respectivos n. os 2, 3, 4, 5 e 6 (cfr. Duarte Santos, “Mudam-se os Tempos, Mudam-se os Casamentos?”, pp. 327 e segs.). Sendo certo que a diferença de sexo dos nubentes foi pressuposta pelo constituinte de 1976 no papel atribuído ao casamento pela nova ordem constitucional, poder-se-ia argumentar no sentido de uma “muta- ção constitucional” que tenha tornado irrelevante para a Constituição a diferença de sexos dos cônjuges. Esta mutação apenas se pode justificar por referência a uma alteração do núcleo essencial da garantia consagrada no artigo 36.º, n.º 1, e já não como decorrência da proibição de discriminação em função da orientação sexual como referi anteriormente. Entendo que defender uma tal “mutação constitucional” no sentido de comportar uma alteração do conceito de casamento tal como recepcionado e acolhido pelo legislador consti- tuinte de 1976 e mantido pelas sucessivas revisões constitucionais – ordinárias e extraordinárias – constitui resultado exegético ilegítimo. Os mecanismos de garantia de uma Constituição – políticos e judiciais – e os respectivos arranjos institucionais específicos podem assumir diversas modalidades e variáveis. E mesmo os mecanismos que se apresentam como formalmente aparentes não podem deixar de ser lidos e interpretados no contexto de cada sistema em que se localizam. Como assinalou Robert Dahl, «as soluções específicas devem ser adaptadas às condições e experiências históricas de cada país, à sua cultura política e às concretas instituições políticas.» ( Democracy and its Critics , Yale University Press, New Haven, p. 192) Não é possível escamotear o facto de que o desenvolvimento constitucional no quadro dos mecanismos políticos e judiciais de garantia da Lei Fundamental se apresenta com um pendor marcadamente textualista. Assim se explica a tendência reiterada do legislador constituinte para incorporar e cristalizar a hermenêutica da jurisprudência deste Tribunal Constitucional nos preceitos da Lei Fundamental. Como escreveu Maria Lúcia Amaral, «Em Portugal (...) textualiza-se a jurisprudência, isto é, procura-se assegurar a sua fixação em norma constitucional escrita. Em vez de se admitir que ela não pode deixar de integrar o corpus constitucio- nal – aceitando-se também que parte desse corpus terá necessariamente que ser móvel, evolutivo, sujeito à crítica pública e gradualmente melhorado pelo que se vai aprendendo com a experiência dos casos concretos – procede-se à sua rigidificação, integrando-a, por via de revisão, no texto da própria Constituição.» (“Pro­ blemas da judicial review em Portugal”, in Themis , ano VI, n.º 10, 2005, pp. 88-89) Sendo este estado de coisas eventualmente passível de considerações críticas, não me parece que o mesmo possa, no entanto, ser ignorado pelo juiz constitucional. Uma das funções que assiste à jurisdição constitucional – qualquer que seja a sua localização – é a de zelar pela integridade da Constituição mesmo que contra a vontade da maioria parlamentar do momento. Este pendor contra-maioritário ou anti-maioritário permite proteger a Constituição – e a legitimidade popular que lhe subjaz – da actuação de maiorias parla- mentares ocasionais. Trata-se, como bem se sabe e agora me limito a invocar, ainda da protecção da ordem democrática: neste caso, protege-se a soberania popular que presidiu à outorga da Constituição de eventuais actuações democráticas as quais, ainda que assentes numa maioria parlamentar, estão em dissonância com aquela soberania popular expressa nas leis fundamentais de um país. Entendo, portanto, que não é legítimo aferir qualquer “mutação constitucional” nesta matéria que pre- scinda de uma opção expressa, prévia e assumida do legislador constituinte. Com efeito, e como salientam Gomes Canotilho e Vital Moreira, a Constituição procedeu a uma recepção do «conceito histórico de casa- mento como união entre duas pessoas de sexo diferente» (cfr. ob. cit., p. 586). Deste modo, sendo o instituto casamento acolhido e garantido enquanto união entre pessoas de sexo distinto, e não se verificando alterações

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