TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010
86 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL São de quatro ordens os direitos relativos à família, ao casamento e à filiação que neste artigo se reco nhecem e garantem: a) direito a constituir família e a contrair casamento (n. os 1 e 2); b) direitos dos cônjuges no âmbito familiar e extra-familiar (n.º 3); c) direitos e deveres dos pais em relação aos filhos (n. os 5 e 6); d) direitos dos filhos (n. os 4 e 5, 2.ª parte). Embora o pedido se centre na violação do n.º 1, o n.º 2 do artigo 36.º é também directa e especialmente relevante para a questão posta. Com efeito, se o n.º 1 tem a estrutura típica de um direito fundamental (“Todostêm o direito a ....”), o n.º 2 remete para a lei a regulação dos requisitos e dos efeitos do casamento. Estes dois preceitos formam um todo incindível quando se trata de perguntar se foi violada, pelos termos desse exercício do poder legislativo que incidiu sobre um dos requisitos do casamento, a garantia institucional do casamento e, reflexamente, da família. Na verdade, a opção normativa sujeita a fiscalização de constitucionalidade não tem por efeito denegar a qualquer pessoa ou restringir o direito fundamental a contrair (ou a não contrair) casamento. O que pode estar em causa é a não preservação do núcleo essencial da instituição matrimonial tal como deva considerar- se que a Constituição a impõe, mediante a subtracção de um elemento do conceito (a diversidade de sexos) que corresponde a um pressuposto de facto da sociedade conjugal como o ordenamento jurídico tradicional mente a concebe. A redacção dos n. os 1 e 2 do artigo 36.º permanece inalterada desde o texto originário da Constituição (o n.º 5 foi alterado na revisão constitucional de 1989 e o n.º 7, introduzido na revisão constitucional de 1982, foi alterado na revisão constitucional de 1997, com acrescentamentos que de nenhum modo influem na análise da questão agora em apreciação). No momento histórico em que a Constituição foi escrita e começou a vigorar, entregando a disciplina dos “requisitos” e “efeitos” do casamento ao legislador ordinário, o Código Civil já dispunha, no seu artigo 1577.º, que o “casamento é o contrato celebrado entre duas pes- soas de sexo diferente”. Este preceito sofreu ligeiras alterações, que não vêm ao caso, através do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, diploma que, aliás, foi aprovado com o declarado propósito de “compati- bilizar” o Código Civil com a Constituição. Não é possível deixar de atribuir relevância interpretativa a esta circunstância, não porque o sentido da Constituição deva determinar-se de acordo com o direito ordinário, mas porque, fazendo o texto constitu- cional presa na realidade social e no contexto jurídico em que emergiu, o casamento era então o que desde há séculos – e, seguramente, para nos limitarmos no tempo à fase de secularização do casamento, a partir das codificações oitocentistas – tem sido nos sistemas jurídicos que se inserem no mesmo espaço cultural do nosso: um acordo entre um homem e uma mulher, feito segundo as determinações da lei e dirigido ao estabelecimento de uma plena comunhão de vida entre eles. Efectivamente, as tensões que ao tempo da elaboração e aprovação da Constituição incidiam sobre a instituição matrimonial respeitavam a outros aspec- tos do casamento e da família: a dissolubilidade por divórcio, a igualdade dos cônjuges no seio da sociedade conjugal, os efeitos patrimoniais e pessoais, a eliminação da distinção entre filhos legítimos e ilegítimos. A pretensão de admissibilidade do casamento com identidade de género entre os cônjuges é fenómeno que ainda não assumia expressão no espaço público, nem em Portugal nem, com expressão significativa, noutros países. No que respeita à homossexualidade, o que então se considerava desfasamento entre a realidade social e o enquadramento jurídico eram os aspectos repressivos (por exemplo, punição ou agravamento da punição no domínio dos actos sexuais com pessoa do mesmo sexo), não a omissão de tutela para uniões estáveis desse tipo. Tardou mais de uma década até que a progressiva integração dos homossexuais na sociedade provocasse um “deslizamento” de posições de contestação ao sistema para pretensões “conservadoras” de tomar parte nas instituições, designadamente no matrimónio, como reconhecimento público da orientação sexual em termos de estrita igualdade com os heterossexuais (cfr. Javier Seonae Prado, “Matrimónio, Familia Y Constitución” in Matrimónio y Adopción por Personas del Mismo Sexo , Cuadernos de Derecho Judicial XXVI). Mas esta mesma evidência arrasta outra. Se pode, sem hesitação, dizer-se que o casamento que a Cons tituição representou foi o casamento entre duas pessoas de sexo diferente, também pode seguramente con- cluir-se que não houve qualquer opção deliberada na matéria que agora nos ocupa no sentido de proibir
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