TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010

74 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL união com uma pessoa do mesmo sexo biológico ou genético. No contexto da opção normativa em apre- ciação, a componente morfológica, psicológica e social da identidade sexual e da consequente determinação jurídica do género perde relevância problemática. Para efeito de aplicação das normas em causa ( i. e ., da existência ou validade do casamento e só para esse aspecto, mas só isso aqui releva), não interessa saber como devem ser encaradas as situações de transexualidade, designadamente a qual das identidades deve atender- se em caso de desconformidade entre a identidade genética e o género constante do registo, porque essa determinação do sexo dos nubentes deixa de influir no direito de contrair determinado casamento. Todavia, note-se que, para quem considerar que, após a intervenção médico-cirúrgica de conversão sexual, é possível fazer reconhecer judicialmente a nova identidade de género com as consequências inerentes, já hoje a lei consentiria o casamento entre pessoas do mesmo sexo biológico, salvo se, também para este efeito, se intro­ duzisse uma restrição à relevância da mudança de sexo (cfr., acórdão Christine Goodwin c. Reino Unido, do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem). 6. A alteração legislativa submetida a fiscalização vai incidir imediatamente sobre o conceito de casa- mento, actualmente definido pelo artigo 1577.º do Código Civil como “o contrato celebrado entre duas pes- soas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código”. De outras disposições do Código se infere que a “plena comunhão de vida” se caracteriza pela recíproca vinculação dos cônjuges aos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência (artigo 1672.º do Código Civil), pela exclusividade [artigo 1601.º, alínea c), do Código Civil] e pelo carácter tendencial ou presuntivamente perpétuo, sem prejuízo da possibilidade de divórcio (artigos 1618.º, n.º 2, e 1773.º do Código Civil). No regime jurídico vigente, a diversidade de sexo entre os nubentes (e, consequentemente, entre os cônjuges) constitui um pressuposto necessário e um requisito essencial do casamento. Se os cônjuges forem do mesmo sexo, o casamento é juridicamente inexistente [artigo 1628.º, alínea e) , do Código Civil]. É esta característica da diversidade de sexos entre os cônjuges, a exigência insuperável de que o matrimónio se celebre entre um homem e uma mulher, desde sempre vigente na ordem jurídica portuguesa e, com alguns abandonos recentes que adiante se mencionarão, na generalidade das ordens jurídicas do mesmo espaço civilizacional, que a iniciativa legislativa questionada veio afastar. Face à Constituição da República Portuguesa, três alternativas de resposta são conjecturáveis e têm tido efectivo curso doutrinário acerca da possibilidade de duas pessoas do mesmo sexo contraírem entre si casamento (cfr., com indicação dos diversos autores nacionais que sustentam cada uma delas, Duarte Santos, Mudam-se os Tempos, Mudam-se os Casamentos, O casamento entre Pessoas do mesmo Sexo e o Direito Português , pp. 283 e segs.): a) o casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma exigência constitucional; b) o casamento entre pessoas do mesmo sexo está constitucionalmente proibido; c) o casamento entre pessoas do mesmo sexo pode ser reconhecido pelo legislador ordinário. No pedido sustenta-se o entendimento enunciado emsegundo lugar, dando a primeira hipótese por arredada de acordo com a jurisprudência firmada no Acórdão n.º 359/09 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt ), que interpreta no sentido de que a Constituição não obriga à consagração legal do casamento entre pessoas do mesmo sexo, sendo legítimas quer a sua proibição pura e simples, quer a previsão de regimes diferenciados. É apenas este entendimento de que o artigo 36.º da Constituição não permite que o legislador ordinário consagre a possibilidade de casamento entre duas pessoas do mesmo sexo cuja sustentação importa averiguar, para com ele confrontar as normas que constituem objecto do pedido, se essa interpretação merecer acolhi- mento. 7. As questões dos modos e âmbito de protecção, reconhecimento e legitimação das situações de vida em comum entre pessoas do mesmo sexo irromperam nas últimas três ou quatro décadas, com premência crescente, tanto na ordem jurídica portuguesa como noutros lugares do mesmo espaço de civilização e cul- tura jurídica e em instâncias supranacionais que Portugal integra, e encontraram cambiantes e alternativas

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