TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010

526 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Por outro lado, o princípio da igualdade de armas entre a acusação e a defesa “perde a nitidez, no próprio direito ordinário, por o modelo de processo penal não assumir (…) uma estrutura acusatória pura, num sentido formal” (artigos 53.º e 409.º, n.º 1, do CPP), de harmonia com a incumbência constitucional no sentido de o Ministério Público, magistratura que goza de autonomia, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade (artigo 219.º, n.ºs 1 e 2), tornando-se assim “evidente que a reclamada «igualdade» de armas processuais (…) só pode ser entendida com um mínimo aceitável de correcção quando lançada no contexto mais amplo da estrutura lógico-material global da acusação e da defesa e da sua dialéctica” [cfr., respectivamente, Fernanda Palma, “Direito penal e processual penal (o papel da jurisprudência constitucio- nal no desenvolvimento dos princípios no caso português e um primeiro confronto com a jurisprudência espanhola)”, in La Constittución Española en el Contexto Constitucional Europeo , Madrid, 2003, p. 1742, nota 13, e Figueiredo Dias, loc. cit. , p. 30]. Entendimento que tem sido acolhido na jurisprudência do Tribunal Constitucional (cfr. Acórdãos n.ºs 38/89, 356/91 e 538/07, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt ). 5. O recorrente sustenta, ainda, que a norma questionada viola o artigo 219.º, n.º 1, da CRP, enquanto comete ao Ministério Público a função de defender a legalidade democrática. Nesta função inclui-se, indiscutivelmente, a faculdade de recorrer, já que o recurso é essencial ao controlo das decisões judiciais num estado de direito (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 538/07), pelo que normas que estabelecem a irrecorribilidade de determinadas decisões judiciais (ou as que não dão legitimi- dade ao Ministério Público para delas recorrer) podem configurar ou implicar uma compressão inadmissível daquela função constitucionalmente prevista, caso em que devem ser consideradas inconstitucionais por violação das disposições da CRP relativas às funções e competência do Ministério Público enquanto institui­ ção (cfr., supra , ponto 2. , Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 530/01). Nos presentes autos, a norma que é objecto do recurso de constitucionalidade contém-se nos n.ºs 1 e 3 do artigo 219.º do CPP, enquanto não admitem a interposição de recurso por parte do Ministério Público de decisão que não aplique medidas de coacção. Trata-se de decisão em matéria de medidas de coacção, no sen- tido de não limitar parcialmente a liberdade do arguido, tomada já depois de ter sido proferido despacho de acusação. Não se justifica, por isso, qualquer intervenção processual penal do Ministério Público para defesa da legalidade democrática ou para cumprimento de qualquer outra função que lhe esteja constitucional- mente cometida. Designadamente a de exercer a acção penal na fase de inquérito, investigando a notícia do crime e decidindo sobre a submissão ou não do arguido a julgamento (artigos 32.º, n.º 5, e 219.º da CRP). Caso em que importaria sempre decidir se a impossibilidade de o Ministério Público recorrer da decisão que não aplique medida de coacção configura ou implica uma compressão inadmissível desta função. Em matéria de medidas de coacção, a função de defesa da legalidade democrática exerce-se garantindo o arguido, presumido inocente, contra privações ilegais e injustificadas da liberdade, motivadas por razões de natureza estritamente processual. O Ministério Público exerce esta função garantindo a observância da lei em matéria de condições e princípios relativos à sujeição do arguido a medidas de coacção [artigos 58.º, n.º 1, alínea b) , 61.º, n.º 3, alínea d) , 191.º e segs. e 268.º, n.º 1, alínea b) , do CPP], o que manifestamente não está em causa quando a decisão judicial é de não aplicação da medida de coacção requerida (assim, Ana Luísa Pinto, loc. cit. , pp. 867 e segs.). 6. Ainda que assim não se entenda, seria sempre de concluir no sentido de não haver uma compressão inadmissível daquela função. A função de defesa da legalidade democrática poderá sempre ser exercida através de requerimento em que o Ministério Público renove o pedido de aplicação de medida de coação, sem prejuízo de o juiz a poder impor oficiosamente (artigo 194.º, n.º 1, do CPP), com a vantagem de aquele requerimento e esta imposição se fundarem nas exigências processuais de natureza cautelar que, no momento, se verifiquem [artigos 204.º e 212.º, n.º 1, alínea b) , do CPP]. Diferentemente do que sucederia em sede de recurso, caso em que o juízo sobre a verificação daquelas exigências seria necessariamente repor­ tado a momento anterior (assim, Damião da Cunha, loc. cit. , pp. 323 e segs.). 7. Há que concluir, por conseguinte, que os n.ºs 1 e 3 do artigo 219.º do Código de Processo Penal, enquanto não admitem a interposição de recurso por parte do Ministério Público de decisão que não

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