TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010
492 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Pode estabelecer-se uma relação constitucional de desvalor entre actos normativos sem que isso signifique o estabelecimento de uma hierarquia formal entre eles. Como diz Joaquim Freitas Rocha, Constituição, Ordenamento e Conflitos Normativos, p. 575, pode acontecer que um acto pré-existente e equi-ordenado (quanto ao título de valência formal na hierarquia dos actos normativos) defina o regime jurídico a que ficam sujeitos actos subsequentes. E é possível identificar leis ordinárias que vinculam outras leis ordinárias em razão de uma habilitação constitucional conferida para o efeito, através de elementos tão diversos como o da competência, da função directiva ou do procedimento específico. O valor reforçado coloca a lei assim qualificável numa relação de proeminência não hierárquica e vincula, nesse domínio específico, o próprio órgão legislativo, de que promana (e não apenas os demais órgãos dotados de poder legislativo, em defesa da competência legislativa reservada do parlamento) que não pode afastar-se dela nos actos legislativos singu- lares compreendidos no espaço de eficácia reforçada. A lei posterior que singularmente se afaste do regime estabelecido pela lei de valor reforçado não a derroga, infringe o nela estabelecido. Cumpre, por último, salientar que a Revisão Constitucional de 1997, ao introduzir o preceito do actual artigo 112.º, n.º 3, não teve o propósito de inovar, introduzindo uma nova categoria de actos legislativos a produzir a partir desse momento, mas um propósito de clarificar o sentido de um conceito a que, já desde a revisão de 1989, a Constituição fazia referência expressa e que, mesmo antes disso, já era identificado pela doutrina e jurisprudência, que reconheciam a existência de relações de prevalência funcional entre actos legislativos colocados no mesmo plano hierárquico, com as consequências daí advenientes. 6.3. Esclarecidos o sentido e alcance do conceito constitucional de lei com valor reforçado, cumpre ago- ra apurar se nele é subsumível a Lei n.º 142/85, de 18 de Novembro, que teve por objecto o estabelecimento do regime da criação de municípios, na sequência dos princípios constantes da Lei n.º 11/82, de 2 de Junho, sobre o regime de criação e extinção das autarquias locais e de determinação da categoria das povoações (cfr. artigo 1.º), enunciando um conjunto de requisitos de que depende a criação dos novos municípios e impõe exigências a observar no procedimento de elaboração das leis que venham a determinar tal criação. Segundo o disposto no artigo 164.º, alínea n) , da Constituição, é da exclusiva competência da Assem- bleia da República legislar sobre a “criação, extinção e modificação de autarquias locais e respectivo regime, sem prejuízo dos poderes das regiões autónomas”. A actual redacção deste preceito resultou da revisão constitucional de 1997 (operada pela Lei Constitucionaln.º 1/97, de 20 de Setembro). Na redacção anterior, o preceito correspondente, do artigo 167.º, n.º 1, alínea n) , reservava apenas à Assembleia da República a competência para definir o “regime de criação, extinção e modificação territorial de autarquias locais” [norma idêntica já constava do artigo 167.º, alínea j) , do preceito aditado pela revisão constitucional de 1982]. Como assinalavam Gomes Canotilho e Vital Moreira, o que (na versão anterior à revisão de 1997) esta va exclusivamente reservado à Assembleia da República, era o regime que havia de disciplinar a criação, a extinção ou a modificação territorial das autarquias locais, e não estes mesmos actos. A criação concreta, bem como a extinção ou modificação poderiam, depois, na base dessa lei, ser efectuadas por outro acto legislativo da própria Assembleia da República, do Governo ou das Assembleias Legislativas das regiões autónomas, conforme os casos. Com a revisão de 1997, o legislador constituinte estendeu a reserva de competência absoluta da Assem bleia da República à criação concreta, assim como à extinção ou modificação de autarquias locais, que, desse modo, passou a ficar vedada ao Governo – salvaguardando os poderes das regiões autónomas sobre a matéria, para os efeitos do disposto no artigo 227.º, n.º 1, alínea l) , que confere a estas entidades o poder de “criar e extinguir autarquias locais, bem como modificar a respectiva área, nos termos da lei” –, continuando a Constituição, como resulta, tanto do teor da alínea n) do n.º 1 do artigo 164.º, como do inciso final da alínea l) do n.º 1 do artigo 227.º, a prever a existência de uma lei geral sobre o regime de criação, extinção e modificação das autarquias locais.
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