TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010
459 ACÓRDÃO N.º 128/10 Não se pense pois que estamos perante um princípio axiologicamente neutro ou de uma fria indiferença ética, que não seja portador de qualquer valor substancial. O facto de o princípio da legalidade exigir que num momento inicial do processo de aplicação se abstraia de qualquer fim ou valor decorre de uma opção “axiológica” de fundo que é a de, nas situações legalmente imprevistas, colocar a liberdade dos cidadãos acima das exigências do poder punitivo. Assim se justifica que nem mesmo os erros e falhas do legislador possam ser corrigidos pelo intérprete contra o arguido. É o que bem explica Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral , Tomo I, 2.ª edição, p. 180: “Esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redacção funcionam, por isso, sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade também outros comportamentos. Neste sentido se tornou célebre a afirmação de v. Liszt segundo a qual a lei penal constitui a magna Charta do criminoso ”. No mesmo sentido, diz Taipa de Carvalho, Direito Penal , I, Porto 2003, pp. 210 e segs.: “O texto legal constitui, porém, um limite às conclusões interpretativas teleológicas, no sentido de impedir a aplicação da norma a uma situação que não esteja abrangida pelo teor literal da norma, isto é, por um ou vários significados da(s) palavra(s) do texto legal. Poder-se-á dizer que, assim, ficarão, por vezes, fora do âmbito jurídico- -penal situações tão ou mais graves do que as expressamente abrangidas pela norma legal (…). Responde-se que assim é, e tem de ser quer em nome da tal garantia política do cidadão quer na linha do carácter fragmentário do direito penal”. A amplitude do processo hermenêutico e argumentativo de aplicação da lei penal encontra aqui, na moldura semântica do texto, uma barreira intransponível − uma barreira que apenas se explica pela preferência civiliza cional que o Direito concede à liberdade pessoal sobre a necessária realização das finalidades político‑criminais que justificama instituição do sistema penal e que está na base da especial força normativa que a nossa Constituição concede à garantia pessoal de não punição fora do domínio da legalidade, ao inclui-la no catálogo dos direitos, liberdades e garantias (artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa)». A questão que é objecto do presente recurso consiste em saber, precisamente, se a interpretação normativa questionada ultrapassa o sentido possível das palavras da lei, se transpõe a barreira da moldura semântica do texto. Para uma resposta negativa em nada contribui a argumentação do tribunal recorrido. 2. Como é sabido, a letra do artigo 7.º do RGIT não tem obstado a que o intérprete lá inclua o representante de facto, apesar de a lei referir as infracções cometidas pelos órgãos ou representantes das pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas (neste sentido, pronunciando-se pela conformidade constitucional de tal interpretação, cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 395/03). A circunstância de o legislador, em 1998, ter aditado ao artigo 227.º do CP o n.º 5 (n.º 3 na redacção vigente), nos termos do qual, sem prejuízo do disposto no artigo 12.º do CP, é punível «(…) quem tiver exercido de facto a respectiva gestão ou direcção efectiva (…)», só pode ser entendida no sentido de a actua ção dos administradores de facto não se encontrar coberta pelo artigo 12.º do CP (neste sentido, Pedro Caeiro, “A responsabilidade dos gerentes e administradores por crimes falenciais na insolvência de uma socie dade comercial”, in Colóquio “Os quinze anos de vigência do Código das Sociedades Comerciais” , Fundação Bissaya Barreto, 2001, pp. 93 e 96 e segs.).
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