TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010

454 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer pena ou medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior. A questão de constitucionalidade posta a este Tribunal é a de saber se o artigo 6.º, n.º 1, do RGIT, quando interpretado no sentido de a expressão “quem agir voluntariamente como titular de um órgão de uma sociedade” abranger o administrador de facto viola ou não um dos corolários do princípio da legalidade em matéria criminal – a proibição do recurso à analogia incriminatória ( nullum crimen sine lege stricta ). Trata-se, no caso, à semelhança do que sucedeu nos autos que deram origem aos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 395/03 e 183/08 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt ) , “da adopção de um critério normativo, dotado de elevada abstracção e susceptível de ser invocado e aplicado a propósito de uma pluralidade de situações concretas”, que é por isso mesmo susceptível de controlo por parte do Tribunal Constitucional. 7. Atento o teor do acórdão recorrido é de concluir que para o Tribunal da Relação de Coimbra a expressão, constante do artigo 6.º, n.º 1, do RGIT, “quem agir voluntariamente como titular de um órgão de uma sociedade” abrange o administrador de facto, bastando “que o agente actue como órgão, arrogando-se essa qualidade. Agir voluntariamente como órgão não é o mesmo que ser titular do órgão, mas antes exercer um poder correspondente ao do órgão.” Em abono deste entendimento estaria a comparação da letra dos artigos 7.º do RGIT e 3.º do Decreto- -Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, com a do artigo 6.º (nos primeiros, responsabilizam-se as pessoas colectivas pelas infracções praticadas pelos seus órgãos; no segundo, basta que o agente actue como órgão, arrogando-se essa qualidade); a introdução do n.º 5 do artigo 227.º do CP, por via da Lei n.º 65/98, de 2 Setembro; e a irrelevância do n.º 1 do artigo 8.º do RGIT, por este reger sobre “responsabilidade civil por substituição.” Da adesão aos fundamentos do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24 de Março de 2004, resulta, ainda, que aquele entendimento seria imposto pela letra do artigo 6.º; pelo elemento histórico, na medida em que “no desenho do ilícito típico das condutas voluntárias dos titulares de órgãos de pessoas colectivas o legislador desconsiderou a circunstância da sua regular ou irregular constituição, ou mera associação de facto, quer a circunstância de os agentes serem titulares de direito ou meramente de facto”; e pela justificação político-criminal da solução. 8. A questão que é objecto do presente recurso consiste em saber, precisamente, se a interpretação nor- mativa questionada ultrapassa o sentido possível das palavras da lei, se transpõe a barreira da moldura semân- tica do texto, “criando situações imprevisíveis (em termos de razoabilidade) para os destinatários das normas penais e consequentemente privando estas normas da possibilidade de cumprirem a sua função específica de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos” (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 395/03). O fundamento e o conteúdo de sentido do princípio da legalidade em matéria criminal impõem que a norma se contenha no quadro de significações possíveis das palavras da lei, sob pena de a interpretação permitida dar lugar à analogia proibida. 9. Como é sabido, a letra do artigo 7.º do RGIT não tem obstado a que o intérprete lá inclua o represen­ tante de facto, apesar de a lei referir as infracções cometidas pelos órgãos ou representantes das pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas (nesse sentido, pronunciando-se pela conformidade constitucional de tal interpretação, cfr. o citado Acórdão n.º 395/03). Enquanto que ali se questionou a imputação das pessoas colectivas por infracções cometidas por administradores de facto, a questão que se coloca agora é precisamente a inversa, importando aferir se, face ao artigo 6.º do RGIT, é admissível a imputação de quem exerceu a administração de facto da sociedade.

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