TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010
424 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL O tema da protecção da confiança tem sido abundantemente tratado pelo Tribunal Constitucional. Contudo – “e em matéria tributária” – a jurisprudência do Tribunal sobre o que queira dizer «a necessária protecção da confiança legítima» não pode deixar de ser olhada com cautela, consoante a sua produção tenha ocorrido “antes” ou “depois” da revisão constitucional de 1997. Na verdade – e como o tem dito a doutrina –, com a formulação actual do n.º 3 do artigo 103.º da CRP alterou-se o “lugar constitucional” que o princípio decorrente do artigo 2.º ocupa “em matérias de natureza fiscal” : a aprovação, em 1997, de um princípio geral de irretroactividade da lei fis- cal veio modificar (e não diminuir ou aumentar) a relevância do princípio. Quer isto dizer exactamente o seguinte. A proibição expressa da retroactividade da lei fiscal não tornou inútil a eventual aplicação, a matérias de natureza tributária, do parâmetro da protecção da confiança. Como diz Casalta Nabais (cfr. Direito Fiscal , 3.ª edi ção, Almedina, Coimbra, p. 149), a protecção da confiança não foi absorvida pelo novo preceito constitucional. Ao textualizar a proibição de normas fiscais retroactivas, a Constituição conferiu uma especial corporização ao princípio, corporização essa que se traduz na necessária ausência de ponderações sempre que ocorram casos [de leis tributárias] que sejam retroactivas em sentido próprio ou autêntico . Nesses casos – nos quais, recorde-se, se não inclui o presente – não há lugar a ponderações: a norma retroactiva é, por força do n.º 3 do artigo 103.º, incons- titucional. Mas tal não significa que, por causa disso , se tenha esgotado ou exaurido a «utilidade» do princípio da confiança em matéria tributária. Pode haver outras situações – de retroactividade imprópria, ou até de não retroac- tividade – que convoquem a questão constitucional que é resolvida pela tutela da confiança». [...] « No Acórdão n.º 287/90, de 30 de Outubro, o Tribunal estabeleceu já os limites do princípio da protecção da confiança na ponderação da eventual inconstitucionalidade de normas “dotadas” de “retroactividade inautêntica, retrospectiva”. Neste caso, à semelhança do que sucede agora, tratava-se da aplicação de uma lei nova a factos novos havendo, todavia, um contexto anterior à ocorrência do facto que criava, eventualmente, expectativas jurídicas. Foi neste aresto ainda que o Tribunal procedeu à distinção entre o tratamento que deveria ser dado aos casos de “retroactividade autêntica” e o tratamento a conferir aos casos de “retroactividade inautêntica” que seriam, disse-se, tutelados apenas à luz do princípio da confiança enquanto decorrência do princípio do Estado de direito consa- grado no artigo 2.º da Constituição. De acordo com esta jurisprudência sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, para que esta última seja tutelada é necessário que se reúnam dois pressupostos essenciais: a) a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da or- dem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicita- mente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição). Os dois critérios enunciados (e que são igualmente expressos noutra jurisprudência do Tribunal) são, no fundo, reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou “testes”. Para que para haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados “expectativas” de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do “comportamento” estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa. Este princípio postula, pois, uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na “estabilidade” da ordem jurídica e na “constância” da actuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui protecção. Por isso, disse-se ainda no Acórdão n.º 287/90 – e importa ter este “dito” presente no caso – que, “em princípio, e tendo em conta a autorevisibilidade das leis”, “não há (…) um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou a manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcial- mente realizados”».
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