TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010
228 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL orientações de desincentivo à concretização da predisposição por si originariamente manifestada, nem de excluir a vinculação do respectivo processo decisório a indicações valorativas de correcção da acção. A tutela da autodeterminação e do direito da mulher grávida ao livre desenvolvimento da sua persona lidade não implica, em síntese, a sua radicalizada compreensão no sentido de algo próximo do right to be left alone proclamado pela Supreme Court norte-americana que, tal como este, conduza o Estado a deixar a grávida sozinha, isolada na privacidade da sua escolha, quando aquela, na realidade, o não está mais. Também deste ponto de vista – que é o da alteridade – a modelação do sistema instituído pela Lei n.º 16/2007, revela-se manifestamente lacunosa. Com efeito, se tal modelação se inscreve, como à partida se viu já que pode, no espaço de liberdade de conformação cometido ao legislador ordinário, ela acaba por dar expressão somente a parte dos factores que convergem no contexto de reflexão que àquele se coloca – os que provêm da ciência do direito penal –, desconsiderando aqueles que, procedendo dos dados fornecidos pela biologia e pela genética, apontam para uma compreensão relacional do fenómeno na base da consideração do feto como o outro (cfr. supra n.º 3.1). 6. Diga-se ainda que se a intenção de realizar o imperativo jurídico constitucional de protecção da vida intra-uterina não é percepcionável a partir do conjunto normativo em que o legislador consubstanciou o modelo, alternativo ao da punibilidade da interrupção, que daquele complexo legal se depreende, o mesmo se diga, por maioria de razão, dos outros lugares do sistema convocados pelo Acórdão como podendo ainda contribuir para o cumprimento daquele imperativo constitucional de tutela. Diga-se desde logo que tal mobilização só teria cabimento se, contra o que acima se sustentou, o bem jurídico-constitucional aqui em análise fosse de natureza difusa, transindividual ou metaindividual, reportando-se a uma pluralidade inde- terminada ou indeterminável de sujeitos ou portadores. Simplesmente, na presença da vida intra-uterina não é mais possível representar dessa forma o bem jurí dico a proteger de forma efectiva nem aceitar o carácter efectivamente protector de qualquer instrumento de direito ordinário que não tenha no seu horizonte cada uma das vidas iniciadas já. Nestes termos não é possível acompanhar o Acórdão quando reconhece eficácia protectora a instrumentos do direito ordinário pensados para evitar gravidezes indesejadas ou para desenvolver o apoio social à maternidade. Uma vez que nenhum destes instrumentos jurídicos é dotado de eficiente aptidão protectiva da vida humana intra-uterina no momento em que o problema do aborto se coloca não é o facto de serem múltiplos nem o resultado da sua soma que permitirá atingir o nível de protecção susceptível de cumprir o mandamento constitucional. 7. Em face do que concluímos que, consistindo qualquer sistema numa combinação de elementos organizada de modo a que o complexo daí resultante exprima, no seu conjunto, um conteúdo significante unitário, proporcionado este pela ideia de um fim, aquele que procede à definição do regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez de acordo com uma fórmula assente na exclusão da proibição penal até às dez semanas de gestação mediante a realização prévia de uma consulta de tipo meramente informativo na qual se encontram impedidos de participar os médicos objectores de consciência é, com clareza, um sistema em cuja unidade se não inscreve qualquer mecanismo orientado e apto a incrementar um modelo compor- tamental favorável à prossecução da gravidez em termos suficientemente compatíveis com a realização do mandado jurídico-constitucional de tutela da vida intra-uterina. O conteúdo significante que essa unidade exprime dá inversamente conta de um pensamento que atribuí ao Estado uma posição de neutralidade valorativa nos momentos de interacção formal com a grávida e, no limite, abstém o Direito, enquanto instrumento de conformação normativa da vida em sociedade, de definir um padrão de dever-ser no âmbito das “interacções humanamente significativas” em que se inscreve o problema da interrupção voluntária da gravidez. Tanto basta, pois, para, entendendo desrespeitada a proibição da insuficiência no cumprimento dos deveres de protecção da vida intra-uterina, ter votado a inconstitucionalidade, por violação do artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, da solução normativa, contida nos artigos 142.º, n.º 1, alínea e) , e n.º 4, alínea b) ,
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