TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010
227 ACÓRDÃO N.º 75/10 O ponto de referência em que, por efeito de tais normas, o sistema é colocado é, por isso, não apenas o de um espaço livre do direito penal ( Rechsfrei Raum ) mas o de um espaço vazio de direito ( Rechstleer Raum ) – um espaço em que não existe qualquer indicação normativa e o acto de interromper a gravidez fica subtraído a toda a forma de influência e orientação pelo Direito. Num sistema normativo em que a auto-contenção do direito penal se faça pela via da imposição de um procedimento orientado jusfundamentalmente, o direito penal, embora não disciplinando, na realidade orientaporque a exclusão da ameaça da pena tem como indispensável condição o acatamento e a observância de um iter procedimental apto a fomentar a conformidade material do resultado com um padrão de validade retirado do bem jurídico tutelado constitucionalmente. Quando assim suceda, o direito penal continuará a exercer, embora à distância, um efeito de protecção, ainda que por uma via alternativa à sancionatória. O seu desaparecimento de cena não é por isso total. Em casos como este, os instrumentos de direito ordinário, no seu conjunto e combinada actuação, continuarão a influenciar regulativamente a realidade no sentido da intenção implícita no mandado jurídico- -constitucional de tutela. O sistema instituído pela Lei n.º 16/2007, ao exprimir uma renúncia pura e simples ao direito penal como instrumento de tutela da vida intra-uterina até às dez semanas de gestação fora do âmbito das fattispe cies justificativas, quando a interrupção resulte da opção livre da mulher e tenha lugar em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, sem colocar como condição para essa retirada qualquer via funcionalmente orientada e apta à realização daquele fim, suprimiu integralmente o anterior meio de pro- tecção sem o substituir por uma verdadeira alternativa de tutela. Uma vez que o mecanismo procedimental que comprime o direito penal e o faz recuar se apresenta des- tituído, quer na racionalidade das opções que encerra, quer na intencionalidade que globalmente exprime, de qualquer aptidão para tornar sociologicamente válido um modelo comportamental compatível com a salvaguarda da vida intra-uterina, a disciplina jurídica instituída pela Lei n.º 16/2007 vem situar a interrup- ção voluntária da gravidez até às dez semanas de gestação numa zona onde o Direito se abstém de fornecer critérios valorativos de acção e se coíbe de conformar normativamente as escolhas. Pela vacuidade que deste ponto de vista encerra, a solução normativa procedente das normas dos artigos 1.º, 2.º, n.º 2 e 6.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007 acaba por consentir aproximações à chamada zona de normali- dade social, o que coloca o regime num ponto manifestamente aquém do limite de suportabilidade em que se traduz o princípio da proibição do défice de protecção ou da insuficiência. Vistas as coisas pelo lado da gestante, tal conclusão, ao invés de se enfraquecer, ganha acrescida evidência. Se se partir do pressuposto de que a solução que toda a norma exprime traduz a ponderação e a valora- ção dos diversos interesses que através dela se regulam, ver-se-á que ao da preservação da vida intra-uterina só poderá contrapor-se, numa leitura conflitual do problema, o da defesa da autodeterminação da mulher grávida e do livre desenvolvimento da sua personalidade. Ora, um dos indicadores da possível violação da proibição da insuficiência no cumprimento dos impe rativos jurídico-constitucionais de tutela consiste na sobre-avaliação, no âmbito da solução normativa dispen sada, dos interesses e bens jurídicos contrapostos (neste sentido, Canaris, Direitos Fundamentais e Direito Privado , Almedina, 2003, pp. 123 e 138-139). Ao isentar o procedimento que substituiu o anterior tipo incriminador do propósito de influenciar a grávida no sentido da preservação da vida intra-uterina e cuidando expressamente da exclusão da possibili- dade de nesse sentido poder vir a ser exercida qualquer forma de ingerência no respectivo processo decisório, a solução normativa enunciada nos artigos 1.º, 2.º, n.º 2, e 6.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007 conduz à conclusão de que, mesmo que se tratasse aí de dar expressão à tutela da autodeterminação da gestante e do seu direito ao livre desenvolvimento da personalidade, estes estariam em qualquer caso sobre-avaliados. E isto porque a tutela da autodeterminação e do direito da mulher grávida ao livre desenvolvimento da sua personalidade não carece que se vá ao ponto de preservar a gestante do confronto institucional com
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