TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010

224 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL direcção à efectividade, favorecendo a conversão da necessidade de tutela numa demanda de criminalização. Inversamente, quando a comunidade tenda a identificar-se prevalecentemente com o autor de um possível conflito formalizado ou a formalizar segundo o modelo penalístico, o consenso convergirá sobre o pedal da garantia (e do garantismo), exigindo maior tutela diante do direito penal e dos seus meios lesivos para a liber- dade individual – propender-se-á, neste caso, para exigir maior limitação e maior controlo do poder punitivo estadual (cfr. ob. cit ., pp. 872-874). 3.3. O ambiente em que as sociedades contemporâneas são chamadas a (re)pensar os problemas con- cernentes à tutela da vida pré-natal, é, pois, complexo e plurisignificante: nele confluem e coexistem dados, postulados e proposições colocados pelas teorias produzidas no âmbito das diversas áreas do conhecimento, os quais, favorecendo múltiplos pontos de vista sobre o problema, abrem espaço ao desenvolvimento, agora no plano de uma abordagem mais próxima, quer das perspectivas que retiram da informação científica e genética o essencial do apoio para a reivindicação, em matéria de política legislativa, de um discurso em torno dos fetal rights – compreendendo este teorizações acerca do direito do feto a nascer, a nascer são, a não sofrer danos e a ser curado (cfr. Kolis Summerer, ob. cit, p. 1247) –, quer daquelas que, emergindo da ciência do direito penal, mais propriamente do capítulo integrado pela discussão em torno da qualidade dos instru- mentos de tutela, reafirmam um paradigma da intervenção penal radicado na função de tutela subsidiária dos bens jurídico-penais, aprofundando a distinção entre necessidade de tutela e exigência de pena. Todas estas referências de sentido, contribuindo para aumentar o grau de complexidade das relações entre os sujeitos envolvidos e entre cada um deles e o Estado – aqui entendido como centro de imputação de actividade jurídica e, nesta acepção, como titular oficial do poder punitivo –, projectam, no plano norma- tivo, novas linhas de tensão, as quais, se para o legislador ordinário implicam a (re)definição de equilíbrios no interior do espaço de discricionariedade e conformação que lhe é próprio, já no plano constitucional não poderão deixar de inscrever-se, conforme se verá, no âmbito da chamada teoria dos deveres de protecção. 4. Assim perspectivado o problema, temos para nós que o sistema de direito ordinário delineado pela Lei n.º 16/2007 não fornece uma protecção suficiente da vida intra-uterina nas primeiras dez semanas de gestação, situando-se por isso aquém do limite colocado pela proibição do défice de protecção, o que acarreta a sua desconformidade constitucional. A demonstração deste ponto implica que nos detenhamos um pouco na caracterização do regime que, em substituição da punibilidade de tal comportamento, o legislador estabeleceu para a interrupção da gravi- dez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reco­ nhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando realizada, por opção desta, nas primeiras dez semanas de gravidez. Assentando na não intervenção do direito penal como mecanismo de protecção até às dez semanas de gestação, o modelo legal sub judicio procede da ideia de que, não obstante o efeito de indiciação produzido pela especial relevância axiológica do bem jusfundamental a proteger, a indagação a que obriga o critério da necessidade e as representações a que a mesma conduz retiram evidência à necessidade de intervenção do direito penal, abrindo espaço à afirmação de meios alternativos de tutela. O que resultaria da circuns­ tância de, no caso de interrupção voluntária da gravidez medicamente realizada, estar em causa proteger a existência embrionária não de arbitrárias intervenções de qualquer terceiro, mas do específico e particular perigo de lesão que, surgindo no contexto de uma gravidez indesejada, procede da iniciativa da própria gestante. Neste contexto, justificar-se-ia o recurso a eventuais soluções de tutela preventiva, assentes numa estrutura comunicacional de maior proximidade, designadamente as que se baseiam num princípio de auto- contenção do direitopenal através de um procedimento orientado jusfundamentalmente, abalando-se a apriorística consideração de que, tratando-se do favorecimento espontâneo de comportamentos compatíveis com a prossecução da gravidez, só a punição penal poderia assegurar o mínimo de tutela constitucionalmente imposto.

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