TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010
132 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL essa aprovação, pelo facto de os dois maiores partidos com assento parlamentar haverem feito constar dos seus programas eleitorais com que se apresentaram a eleições legislativas o compromisso de que somente por via referendária aceitariam modificar o regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez. IV – Ambas as arguições foram consideradas improcedentes. A inibição do órgão legiferante para tomar uma medida legislativa de sentido normativo correspondente ao da proposta submetida a julgamento só poderia fundar-se no vencimento, em referendo, da resposta negativa, por um resultado que outor gasse carácter vinculativo a essa consulta. Nenhuma dessas duas condições se verificou. Por outro lado, a quebra de compromissos eleitorais é algo que se situa no estrito plano da responsabilidade política, podendo ser objecto de avaliação dos cidadãos eleitores, com eventuais reflexos nos resultados de eleições subsequentes, mas sem qualquer projecção no plano da legitimidade constitucional dos órgãos com competência legislativa. V – No que respeita à inconstitucionalidade material, foram várias as questões suscitadas. A questão central (e de natureza prejudicial, em relação às demais) tinha a ver com a viabilidade constitucio- nal da impunibilidade da interrupção da gravidez realizada por vontade da mulher, sujeita apenas à observância de certos procedimentos, sem estar condicionada pela invocação de causas justificativas, taxativamente indicadas e de verificação objectivamente controlável. No entender dos requerentes, a solução de despenalização contenderia com o imperativo constitucional de protecção da vida intra- uterina, decorrente da inviolabilidade da vida humana, consagrada no artigo 24.º da Constituição. Nem se mostraria idónea a essa tutela a disciplina concreta da consulta obrigatória, uma vez que ela tem um carácter puramente informativo, não implicando o aconselhamento da mulher a não realizar o aborto e a decidir-se pela preservação da vida. VI – O Tribunal não foi desse entendimento. Reafirmando jurisprudência anterior no sentido de que a vida intra-uterina está abrangida pelo âmbito de protecção do artigo 24.º, mas apenas enquanto valor consti- tucional objectivo, o Acórdão salienta que daí se retira somente o dever de proteger, não estando predeter- minado na Constituição um específico modo de protecção. Cabe ao legislador fixá-lo, com respeito pela proibição de insuficiência (garantia de um mínimo de tutela), mas também pela proibição do excesso (na afectação de outros bens constitucionalmente protegidos). Sendo a sanção penal o meio mais lesivo desses bens, a sua utilização só está legitimada quando seja de lhe atribuir eficiência, e eficiência que, atingindo um grau superior à de qualquer outro meio alternativo, seja a única capaz de traduzir a medida de protecção constitucionalmente imposta. Ora, estes requisitos de idoneidade e necessidade não estão aqui preenchi- dos, por razões que se prendem com a especificidade do conflito quanto à decisão de abortar: um conflito “interior”, de carácter existencial, na esfera pessoal de alguém que simultaneamente provoca e sofre a lesão. Neste quadro singular, é defensável que o Estado valore como cumprindo melhor o seu dever de protecção, numa fase inicial da gravidez, tentando “ganhar” a grávida para a solução da preservação da potencialidade de vida, através da promoção de uma decisão reflectida, mas deixada, em último termo, à sua responsabili- dade, do que ameaçá-la com uma punição penal, de resultado comprovadamente fracassado. VII – Se o afastamento de instrumentos penais não merece, a priori , censura constitucional, a disciplina do modo operativo, em concreto, dessa opção de base cumpre suficientemente o imperativo de pro- tecção, não deixando de forma alguma transparecer uma posição de indiferença ou de neutralidade perante a decisão que a grávida venha a tomar. Ainda que a finalidade dissuasora não esteja expres- samente fixada, só o empenho na tutela, para além da saúde da mulher, da vida pré-natal dá objecti- vamente sentido à dependência procedimental em que é posta a realização da interrupção voluntária da gravidez. Há que ter em conta, sobretudo, que dos pressupostos de não punibilidade faz parte uma
Made with FlippingBook
RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=