TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010

104 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL O artigo 36.º, n.º 2, da Constituição remeteu para o legislador ordinário a regulação dos pressupostos e dos efeitos do casamento e da sua dissolução por morte ou por divórcio, mas dentro da sua concepção de contrato entre pessoas de sexo diferente, sendo evidente existir, no campo material remetido, uma discricio- nariedade normativo-constitutiva do legislador ordinário muito ampla, conquanto não toque na “essência ou nos seus traços característicos” do casamento tal como ele foi assumido pelo legislador constitucional. Ver nessa remissão para a lei ordinária a possibilidade de conformação de um dos elementos essenciais constituintes da garantia institucional do casamento, à data da Constituição originária, é despir o conceito de casamento da qualidade de garantia institucional constitucional, para valer apenas como direito fundamental de conteúdo não densificado constitucionalmente e a densificar pelo legislador ordinário. Bem entendido, o Acórdão reduziu a dimensão de garantia de instituto do casamento à obrigatoriedade, apenas, de o legislador ordinário ter de dispor, sempre, em favor das pessoas, de um instituto que se deno- mine de casamento. Deve notar-se, de resto, que o Acórdão padece de evidente incongruência científica quando afasta a de- terminação do conteúdo do direito fundamental ao casamento pelo sentido normativo que o conceito tinha no sistema jurídico, a quando da fixação do texto constitucional de 1976, mas, simultaneamente, procede à definição do seu núcleo servindo-se do sistema jurídico, fazendo-o equivaler a uma “comunhão de vida entre duas pessoas, estabelecida mediante um acto como tal designado, juridicamente regulado, livre, incondicio- nal e inaprazável”. Na verdade, estes elementos só poderão ser apreensíveis através do sistema jurídico, dado ninguém os conseguir descortinar no artigo 36.º da Constituição ou em outros preceitos constitucionais. 8 – Aliás, a haver dúvidas interpretativas sobre o conteúdo do conceito constitucional português de casamento, mesmo que emergentes de uma interpretação sistemática dos n. os 1 e 2 do artigo 36.º, elas teriam de ser resolvidas, então, por força do disposto no artigo 16.º, n.º 2, da Constituição, com recurso ao disposto no artigo 16.º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH) e este é claro, ao dispor, que «a partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família (…)». O conceito de casamento aqui acolhido é, seguramente, um conceito normativo, na medida em que se afirma através da definição do direito do homem e da mulher a casar-se um com o outro (e a constituir famí- lia que é considerada, no n.º 3 do mesmo artigo, elemento natural e fundamental da sociedade), como, aliás, de resto, o acórdão de que dissentimos se viu obrigado a aceitar, em face da letra e do elemento sistemático de interpretação da própria DUDH. Ora, a DUDH, vigente na Ordem Jurídica Internacional desde muitos anos antes da nossa Constitu- ição de 1976, foi assumida expressamente como fonte vinculativa de conteúdo dos direitos fundamentais reconhecidos na nossa Constituição, no seu artigo 16.º, n.º 2. E não vale o argumento que o mesmo acórdão esgrime para afastar a aplicabilidade desta norma da DUDH, apodando até a convocação da interpretação da norma constitucional respeitante ao casamento (o artigo 36.º, n.º 1) segundo o sentido da norma da DUDH de equívoco argumentativo, afirmando que «o n.º 2 do artigo 16.º da Constituição funciona apenas bona parte e do “lado” jurídico-individual dos direitos fundamentais». Na verdade, o n.º 2 do artigo 16.º da Constituição é claro ao dizer que «os preceitos constitucionais e le- gais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem». Deste modo, a tarefa que se coloca ao intérprete constitucional é a de saber qual o conteúdo normativo que os n. os 1 e 2 do artigo 36.º da Constituição incorporaram, ao falarem de “direito de contrair casamento em condições de plena igualdade” e de que «cabe à lei a regulação dos requisitos e dos efeitos do casamento». Para não padecer de incongruência, o acórdão teria forçosamente de admitir que, à data da Constituição originária, o direito a contrair casamento não tinha o sentido estabelecido na DUDH, mas já o outro mais lato que agora entende como constituir o seu núcleo essencial ou o seu âmbito de protecção como direito

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=