TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010

102 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL 6 – Para podermos admitir que o conceito de casamento seria, na nossa Constituição, um conceito aberto, sujeito às variações do tempo, segundo a vontade do legislador ordinário, teríamos de ver a expressão verbal “contrair casamento” constante do n.º 1 do artigo 36.º da Constituição da República Portuguesa como sendo um conceito de tipo descritivo, um conceito de tipo fáctico, ou um mero conceito com inten- ção proclamadora de um programa constitucional a concretizar ao longo do tempo por parte do legislador ordinário, intencionalidade esta sempre manifestada de forma clara através de expressões como a “a lei regula (…)”, “nos termos da lei(…)”, “nos quadros definidos pela lei(…)”, “é disciplinada por lei(…)”, etc. Se fosse um destes tipos de conceito, decerto que estaria aberto a absorver as novas formulações da realidade superveniente que postulassem a protecção dos mesmos interesses. Jamais vimos, porém, sustentada em parte alguma entre nós uma tal natureza do conceito do direito a contrair casamento, nos vários séculos da nossa história pátria até à década de 90! Nunca como tal foi tido pelo povo, pela doutrina ou pela jurisprudência! À data da fixação do texto e da intencionalidade constitucional da Constituição de 1976, o casamento era um complexo normativo bem precisado no sistema jurídico de então como contrato que pressupunha a diversidade de sexo dos cônjuges, através do qual se pretendia constituir família mediante uma plena comu­ nhão de vida, sendo a família considerada como elemento natural e fundamental da sociedade, na medida em que assegurava a renovação das gerações: quer na Constituição de 1933 (artigos 12.º a 14.º), mantida transitoriamente em vigor pela Lei n.º 3/74, de 14 de Maio, na parte que não contrariasse os princípios expressos no Programa do Movimento das Forças Armadas, sendo irrefutável que estas dimensões da insti- tuição jurídica os não contrariava, quer no Código Civil vigente, de 1966 (artigo 1577.º), quer em todo o resto do sistema jurídico infraconstitucional. À luz de todo o sistema jurídico ele tinha seguramente como seu núcleo essencial: a celebração de um contrato entre duas pessoas de sexo diferente e o escopo de, através desse contrato, essas pessoas de sexo dife- rente pretenderem constituir família mediante uma plena comunhão de vida. E essa plena comunhão de vida justificava a imposição, como instrumentos mínimos da sua prossecução, de certos deveres estatutários (de estado de casado), como os do respeito, coabitação, cooperação, assistência e fidelidade (artigo 1672.º do Código Civil). Não obstante a sua natureza de deveres legais, e como tais, configuráveis em relação a outros tipos de contratos, certo é que a diferença de sexo dos cônjuges emprestava uma especial natureza e razão de ser aos deveres de coabitação e de fidelidade conjugais, bem diversa daquela que será possível descortinar numa relação homossexual. Foi o complexo normativo constituído por estes dois elementos nucleares que o nosso legislador consti- tucional pretendeu assegurar a todos, numa dupla dimensão de direito fundamental e de garantia institucio- nal, ao prescrever, no artigo 36.º, n.º 1, que “todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade”. As expressões verbais “direito a constituir família e de contrair casamento em condições de plena igual- dade” não são usadas enquanto reconhecimento de uma certa realidade social do tempo, mutável, na altura da fixação do texto constitucional, mas enquanto “institutos” ou “instituições” existentes no todo do orde- namento jurídico que a Constituição quis reconhecer e “aos quais, em qualquer caso, pretende assegurar protecção especial na sua essência ou nos seus traços característicos” (cfr. José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 , 2.ª edição, p. 139). E também não são usadas enquanto conceito descritivo, mas sim normativo, envolvendo ponderações normativo-regulativas, no próprio texto constitucional, como resulta de uma interpretação sistemática da Constituição, esta só possível relativamente a normas. Todo o artigo 36.º da Constituição está estruturado em torno do pressuposto do casamento heterossex- ual, pois só relativamente a um casamento concebido nesses termos é que se justifica que o legislador consti tucional tenha tido a necessidade de consagrar expressamente, no seu n.º 3, que «os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade civil e política e à manutenção e educação dos filhos” e, no n.º 4, que

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