TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 77.º Volume \ 2010
100 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL – no plano constitucional – que legitimem a conclusão de que terá ocorrido, neste campo, uma “muta- ção constitucional”, a mesma apenas poderá ser prosseguida pelo legislador ordinário perante prévia opção expressa do legislador constituinte. Como salienta o parecer junto pelo pedido, «tal postulado levaria, (…) a uma interpretação actualista, cujos requisitos se fundam que o novo sentido a imputar à lei (constitucional) vigente possua um mínimo de correspondência verbal no respectivo texto e que a interpretação “actualista” seja uma extensão, um prolongamento, uma ampliação ou continuação do espírito da norma vigente – e não a substituição desse espírito (…)». Ora, estando-se perante um conceito normativo, na medida “em que arrastam consigo determinados regimes jurídicos gizados pela norma”, como seja o conjunto de direitos e deveres dos pais em relação aos seus filhos, e pela função natural de protecção e educação dos filhos, logo se conclui que o aludido conceito normativo de casamento “não é aplicável, por interpretação actualizada, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo.” Com efeito, o legislador constituinte não se confunde com o legislador ordinário desde logo quanto à maioria necessária para aprovar uma alteração à Constituição e aos trâmites processuais que tal processo deve observar. Saliente-se ainda o facto de que a aprovação de uma alteração constitucional não reveste, entre nós, exigências que a tornam um objectivo quase inalcançável. Isso reflecte-se, aliás, no facto de que em 34 anos de vida da Constituição foram aprovadas sete alterações ao respectivo conteúdo. Ora, quando o legislador constituinte, nas sete revisões constitucionais que se seguiram a 1976, se manteve sistematicamente silente nesta matéria, constatando-se, no entanto, que a mesma não foi pura e simplesmente ignorada como se pode verificar pelas declarações de voto apostas por vários deputados aquando da alteração do artigo 13.º, n.º 2, em 2004, não se pode deixar de relevar um tal comportamento como reiterando o entendimento de que o conceito de casamento constitucionalmente acolhido e tutelado é o casamento entre pessoas de sexo diverso. Aliás, como a própria posição que fez vencimento reconhece, «as questões dos modos e âmbito de protecção, reconhecimento e legitimação das situações de vida em comum de casais homossexuais irromperam nas últimas três ou quatro décadas, com premência crescente, tanto na ordem jurídica portuguesa como noutros lugares do mesmo espaço de civilização e cultura jurídica que Portugal integra (…).» O apego à literalidade que vem sendo demonstrado pelo legislador das várias revisões constitucionais força a reconhecer um deter minado sentido ao seu silêncio nesta matéria do casamento – o sentido de que não foi por si (até agora) pretendida uma qualquer alteração neste domínio, continuando, por conseguinte, a valer na ordem consti- tucional de casamento o conceito que foi acolhido em 1976. A posição que fez vencimento reconhece e aceita que a liberdade de conformação do legislador ordinário em sede de regulação jurídica do casamento não é absoluta. Não vejo no entanto como satisfatórios os argu- mentos que aduz no sentido de que a diversidade de sexo dos nubentes não se situa, ao contrário de outros aspectos, no âmbito do conteúdo essencial que, por esta via, escapa à disponibilidade do legislador ordinário. Concluo, assim, que o legislador ordinário – consubstanciado em determinada maioria parlamentar ocasional – não pode afastar uma tal opção constitucional, impondo um conceito de casamento que viola o núcleo essencial da garantia plasmada na Lei Fundamental. Portanto, e porque a problemática do casamento entre pessoas do mesmo sexo não é assunto ignorado pelo legislador constituinte, em face do que vem sendo a matriz do paradigma constitucional nacional, entendo que a possibilidade de introdução, por via legal, do casamento entre pessoas do mesmo sexo, carece de opção específica do legislador constituinte. Como salienta Cristina Queiroz, «pelas funções que a Constituição desempenha, não será possível pas- sar por cima do direito constitucional escrito, reclamando-se do direito constitucional não escrito. Neste sen- tido, não poderão ocorrer entre nós mutações constitucionais de forma derrogatória face a um objectivo nor- mativo deixado claro pelo legislador constituinte. O processo de revisão constitucional existe precisamente para ultrapassar as restrições às normas constitucionais escritas feitas em nome do direito constitucional não escrito.» ( Interpretação constitucional e poder judicial – Sobre a epistemologia da construção constitucional, Coimbra Editora, 2000, pp. 117-118).
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