40º Aniversário da Constituição da República Portuguesa

63 Miguel Nogueira de Brito O que possibilitaria esta dupla rutura seria uma mudança do paradigma da democracia e do estado de direito, resultante da mudança das condições de validade da produção legisla- tiva, que deixam de ser apenas formais e passam a ser também substanciais 16 . Esta mudança é uma consequência direta da já mencionada introdução generalizada de escolhas ético-políticas nas constituições. A transformação em causa leva Ferrajoli a sustentar a existência dum nexo isomórfico entre condições jurídicas de validade – quaisquer que sejam elas, democráticas ou não – e condições políticas do exercício legítimo do poder normativo 17 . O resultado disto é o modelo garantista da democracia constitucional, em que a constituição não se limita já a regular a competência e a forma dos atos políticos e normativos, mas também o seu conteúdo. O núcleo do modelo garantista consiste, pois, em salientar a correlação isomórfica entre as estruturas normativas do direito e as estruturas institucionais da democracia e, a partir daí, o carácter formal dos direitos fundamentais, quer dizer « a estipulação daquilo que n ão pode ser decidido e daquilo que não pode não ser decidido, enquanto garantia daquilo que no pacto constituinte foi estipulado como fundamental » 18 . Os direitos fundamentais são, de acordo com este modelo, considerados como conceitos suscetíveis, em sede de teoria do direito, de defi- nições puramente formais, ao contrário do que sucede com quaisquer tentativas de definição substancial avançadas por algumas teses neoconstitucionalistas ou principialistas. Mas seria precisamente com base em tais definições puramente formais que se tornaria possível conce- ber os direitos como regras objeto de aplicação, em vez de princípios objeto de ponderação 19 . Não é totalmente claro em que medida o estrito positivismo assumido por Ferrajoli se mostra compatível com o isomorfismo entre estruturas normativas e democrático-constitu- cionais, desde logo quanto às questões de saber se está aqui em causa uma conexão histórica acidental entre direito e sistema político constitucional e se o autor pretende com tal isomor- fismo afirmar uma conexão entre direito e moral segundo as teses do positivismo exclusivo ou, diferentemente, do positivismo inclusivo 20 . Em resultado de tal isomorfismo Ferrajoli afasta- -se do pensamento positivista de Kelsen, afirmando a possibilidade dum direito ilegítimo, a ser superado como condição da consistência do direito positivo com os discursos garantistas desenvolvidos sobre o mesmo 21 . Seja como for que se responda a estas questões, a verdade é que o constitucionalismo garantista promove « uma cultura jurídica militante na defesa da ordem constitucional dos direitos fundamentais: uma cultura que requer um maior e não menor rigor metodológico » 22 . Mais ainda, o modelo garantista do constitucionalismo transforma a 16  Cf. Luigi Ferrajoli, La Democrazia Attraverso i Diritti , cit., p. 36. O que se diz no texto não significa que os autores do primeiro positivismo, com destaque para Kelsen, não admitissem a possibilidade de « as normas superiores condicionarem não só a forma, mas também o conteúdo das normas inferiores » (cf. ob. cit. , p. 39). Simplesmente, segundo Ferrajoli, a identificação da validade com existência, ou vigência, a que procedia Kelsen, levando-o a negar a virtual existência de direito ilegítimo (cf. ob. cit. , p. 40), impedia-o de efetuar a transição para o paradigma constitucional. 17  Cf. Luigi Ferrajoli, La Democrazia Attraverso i Diritti , cit., pp. 34 e ss. 18  Cf. Luigi Ferrajoli, La Democrazia Attraverso i Diritti , cit., p. 94. 19  Cf. Luigi Ferrajoli, La Democrazia Attraverso i Diritti , cit., pp. 121-122. 20  Cf. Luigi Ferrajoli, La Democrazia Attraverso i Diritti , cit., pp. 88-89: « conceitos como liberdade, igualdade, e direitos huma- nos, nascidos na filosofia política, transitam para os ordenamentos positivos e não podem mais ser ignorados da teoria do direito ». Sobre os positivismos exclusivo e inclusivo, cf., respetivamente, Andrei Marmor “Exclusive Legal Positivism”, in Jules Cole- man e Scott Shapiro (orgs.), The Oxford Handbook of Jurisprudence & Philosophy of Law , Oxford University Press, 2002, pp. 104 e ss.; Kenneth Einar Himma, “Inclusive Legal Positivism”, in ibidem , pp. 125 e ss. 21  Cf. Luigi Ferrajoli, Principia Iuris . Teoria del Diritto e della Democrazia , 1. Teoria del Diritto, 2.ª ed., Editori Laterza, Roma-Bari, 2012, p. 15. 22  Cf. Luigi Ferrajoli, La Democrazia Attraverso i Diritti , cit., p. 88.

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