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ACÓRDÃO Nº 30/2020

Processo n.º 176/19

2.ª Secção

Relator: Conselheiro Pedro Machete

 

 

 

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. A., Lda.ª, recorrente nos presentes autos em que são recorridos B. e C., deduziu, por apenso aos autos de execução de sentença, contra si instaurada pelos segundos, incidente de suspeição da juíza titular do processo, requerendo que a mesma fosse afastada da sua tramitação. Após resposta da juíza recusada, nos termos do disposto no artigo 122.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, foram os autos remetidos ao Presidente do Tribunal da Relação de Évora.

Por decisão de 18 de dezembro de 2018 do Vice-Presidente daquele tribunal, foi indeferido o incidente de suspeição e condenada a recusante, ora recorrente, como litigante de má-fé, na multa de 3 (três) UCs, nos termos seguintes:

«Des[t]arte, não havendo motivo para declarar a parcialidade da Mm.ª Juíza do processo, importará ainda averiguar se tal pode ser enquadrado na litigância de má-fé (como se disse supra e segundo o artigo 123.º, nº 3, in fine, do Código de Processo Civil, o juiz terá que ter presente que, quando julgar improcedente a suspeição, apreciará se o recusante procedeu de má fé).

Bem se compreende este regime, na medida em que com o levantamento do incidente da suspeição do juiz, coloca-se praticamente tudo em causa: desde logo a independência e imparcialidade do magistrado judicial (matriz e vocação intrínseca do mesmo), a regra do juiz natural na repartição dos processos, vai-se introduzir turbação no trabalho desenvolvido pelo visado, pondo-se em causa afinal a própria administração da justiça. Daí que haja que ver se foram tomadas as devidas cautelas na invocação de tão gravosa matéria naturalmente, sempre sem obstaculizar a que o incidente possa ser suscitado quando a parte se sinta, efetivamente, lesada com a atuação do juiz.

No anterior Código de Processo Civil era quase automática a subsunção a uma conduta eivada de má-fé quando o incidente fosse julgado improcedente, já que, vindo os casos de suspeição do juiz taxativamente enunciados no seu artigo 127.º, n.º 1, era fácil ao recusante aperceber-se logo da adequação, ou não, dos factos aduzidos ao enquadramento numa das alíneas desse preceito.

Com o novo Código de Processo Civil, a coisa complicou-se neste ponto. É que se introduziu uma cláusula de âmbito geral e os casos descritos nas suas alíneas passaram a meros exemplos da sua verificação (nos termos do seu artigo 120.º, n.º 1, As partes podem opor suspeição ao juiz quando ocorrer motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade).

Esta versão já pressupõe uma análise ou trabalho de enquadramento.

Em todo o caso, no presente incidente, não nos surge nenhuma dúvida, salva melhor opinião e, se as houvesse, sempre se teria que decidir a favor da requerente que a respetiva dedução se deva enquadrar na figura da litigância de má-fé (enquanto conduta eticamente censurável), precisamente dado aquele regime legal dos recursos que não permite ao Juiz decidir logo da sua admissão, antes tendo que esperar pelas contra-alegações da outra parte, ou pelo decurso do respetivo prazo (vide o artigo 638.º, n,º 5, do C.P.C.: Em prazo idêntico ao da interposição, pode o recorrido responder à alegação do recorrente, e o seu artigo 641.º, n.º 1, 'ab initio'. Findos os prazos concedidos às partes, o juiz aprecia os requerimentos apresentados).

E as partes (rectius, os seus advogados) devem saber desse regime e não vir logo peticionar a suspeição do juiz do processo que foi aqui um expediente usado apenas para parar o andamento da execução.

Não é admissível que possa concluir-se por qualquer parcialidade do juiz, ou sequer aceitável que a parte, sem arguir qualquer outra factualidade, pudesse legitimamente estar convencida do contrário.

Pelo que será condenada em multa (artigo 27.º, n.º 3, do RCP).»

 

2. É desta decisão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), «a fim de ver apreciada a seguinte questão de inconstitucionalidade»:

«A interpretação do preceito constante no n.º 3 do artigo 123.º do Código de Processo Civil no sentido de que a decisão do Presidente do Tribunal da Relação que, julgando improcedente o incidente de suspeição de juiz, e condenando o recusante em multa por litigância de má fé, não tem de ser precedida da audição da parte interessada, quanto à aplicação de sanção em consequência de conduta processual censurável, viola os direitos de defesa  e de contraditório contidos no direito a um processo equitativo consagrado no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

- A questão da inconstitucionalidade não foi suscitada anteriormente, porquanto a interpretação dada à norma na decisão recorrida foi de todo imprevisível, não podendo razoavelmente o recorrente contar com a sua aplicação; [].»

 

3. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal, foram as partes notificadas para alegar.

Apenas a recorrente apresentou alegações, tendo, a final, formulado as seguintes conclusões:

«I - Por douta Decisão Singular de 18 de dezembro de 2018, proferida pelo Exm.º Senhor Juiz Desembargador Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Évora foi indeferido o incidente de suspeição da Mm.ª Juíza titular do processo 26/18.8T8SLV-B do Tribunal Judicial da Comarca de Faro - Silves - Juízo de Execução, tendo a recorrente sido condenada em multa por litigância de má fé (artigo 27.º n.º 3 do R.C.P.).

II - O Tribunal a quo interpretou a norma do artigo 123.º n.º 3 do Código de Processo Civil no sentido de julgado improcedente o incidente de suspeição de juiz, a condenação em multa por litigância de má fé do recusante, não tem de ser precedida de audição prévia da parte interessada, omitindo-se o exercício do contraditório, o que constitui uma interpretação normativa inconstitucional, por violação do artigo 20.º números 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa

III - O Tribunal a quo interpretou a norma do artigo 123.º n.º 3 do Código de Processo Civil no sentido de condenar em multa por litigância de má fé, sem audição prévia da recorrente e sem exercício do contraditório, pois a recorrente nunca foi notificada para se pronunciar sobre a possibilidade de uma decisão nesse sentido.

IV - O direito de acesso ao direito e aos tribunais, integrante do princípio do Estado de Direito Democrático e consagrado no artigo 20.º n.º 1 da C.R.P., proíbe a privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, assegurando o princípio do contraditório e o direito de defesa, conforme estabelece o artigo 20.º n.º 4 da C.R.P.

V - A norma do artigo 123.º n.º 3 do C.P.C. interpretada no sentido de que a condenação por litigância de má fé e a multa aí previstas podem ser impostas à parte, sem que previamente lhe seja concedida a oportunidade de se pronunciar sobre tal sanção, viola os princípios constitucionais do acesso ao direito, do contraditório e da proibição da indefesa consagrados no artigo 20.º da C.R.P.

VI - No âmbito do regime da litigância de má fé, vem o Tribunal Constitucional reiteradamente afirmando que, por força dos direitos de defesa e de contraditório contidos no direito a um processo equitativo consagrado no artigo 20.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, a decisão que aplica a multa processual prevista no regime da litigância de má fé pressupõe a prévia audição do interessado, ao qual deve ser reconhecida a faculdade de alegar o que tiver por conveniente quanto à condenação em multa conforme acórdãos do Tribunal Constitucional números 440/1994, 103/1995, 357/1998 e 289/2002.

VII - Face ao supra exposto, e por se entender que a interpretação do Venerando Tribunal da Relação de Évora é inconstitucional, requer-se que seja dado provimento ao presente recurso, e em consequência ser declarada a inconstitucionalidade do entendimento normativo dado ao artigo 123.º número 3 do Código de Processo Civil, por violação do artigo 20.º números 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa.»

 

Cumpre apreciar e decidir.

 

II. Fundamentação

4. O artigo 123.º, n.º 3, do Código de Processo Civil estabelece o seguinte, a propósito do julgamento do incidente de suspeição:

«Concluídas as diligências que se mostrem necessárias, o presidente [da relação] decide sem recurso; quando julgar improcedente a suspeição, apreciará se o recusante procedeu de má fé.»

No presente recurso está em causa saber se esta apreciação exige a audição prévia do recusante, sob pena de, no caso de a mesma culminar numa decisão de condenação deste último como litigante de má fé, ocorrer uma violação do princípio do contraditório.

 

5. Sobre o princípio em apreço, tem este Tribunal uma jurisprudência consolidada.

Seguindo de perto a análise desenvolvida no Acórdão n.º 510/2015 (v., em particular, o seu n.º 4; este acórdão, assim como os demais adiante referidos, a partir da ligação http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), dir-se-á, conforme também já salientado no Acórdão n.º 86/88, que o referido princípio «se integra no âmbito da garantia de acesso ao direito, a qual abrange, entre o mais, um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras (cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, I, Coimbra, 1956, p. 364)».

«No Acórdão n.º 243/2013 disse Tribunal, quanto às exigências do processo equitativo que

[O] procedimento de conformação normativa deve ser justo e a própria conformação deve resultar num processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, anot. XVI ao artigo 20.º, p. 415). Se tal exigência não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta estruturação do processo, a mesma impõe, antes de mais, que as normas processuais proporcionem aos interessados meios efetivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e paridade entre as partes na dialética que elas protagonizam no processo (Ac. n.º 632/99). Um processo equitativo postula, por isso, a efetividade do direito de defesa no processo, bem como dos princípios do contraditório e da igualdade de armas (cfr. Rui Medeiros in Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2010, anot. XVIII ao artigo 20.º, p. 441).»

«É assente, na jurisprudência constitucional, que do conteúdo do direito de defesa e do princípio do contraditório resulta prima facie que cada uma das partes deve poder exercer uma influência efetiva no desenvolvimento do processo, devendo ter a possibilidade, não só de apresentar as razões de facto e de direito que sustentam a sua posição antes de o tribunal decidir questões que lhes digam respeito, mas também de deduzir as suas razões, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e tomar posição sobre o resultado de umas e outras (cfr. designadamente, os Acórdãos. n.ºs 1185/96 e 1193/96).»

«A jurisprudência adota, assim, um entendimento amplo do contraditório, entendido como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão (Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil: conceito e princípios gerais. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 96.). Adianta ainda este autor que o escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento do processo.»

 

6. No caso em apreço está em causa a apreciação e condenação de uma das partes como litigante de má fé.

Preliminarmente, importa recordar que «o Tribunal Constitucional não tem enquadrado as [normas que regulam a litigância de má fé], quando aplicadas em processos de natureza civil, no âmbito do artigo 32.º da CRP que regula as garantias em processo criminal e contraordenacional  , mas sim no âmbito de proteção do artigo 20.º da Lei Fundamental: acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva (cfr. Acórdão n.º 302/2005)» (assim, v. o Acórdão n.º 652/2017, n.º 2.3).

Por outro lado, como a recorrente salientou, a jurisprudência deste Tribunal também tem entendido, a propósito da condenação por litigância de má fé em geral isto é, nos termos do disposto no artigo 456.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil de 1961, e a que corresponde o artigo 542.º, n.ºs 1 e 2, do atual , que a mesma só deve ter lugar, dando-se à parte (ou, sendo o caso, ao seu representante), antes de assim ser condenada, a oportunidade de se defender, para o que tem que ser, previamente, ouvida. Ou seja: uma tal condenação exige que se observe, no processo, o princípio do contraditório; com efeito, embora não formulado na Constituição expressamente para o processo civil, não pode, na verdade, deixar de valer também neste domínio (v., por exemplo, os Acórdãos n.ºs 440/94, 103/95 357/98 e 289/2002; reiterando tal entendimento, no tocante ao Código de Processo Civil de 2013, e com referência ao respetivo artigo 123.º, n.º 3, v. o Acórdão n.º 174/2018, n.º 11).

 

7. A norma questionada no presente recurso é extraída do artigo 123.º, n.º 3, do Código de Processo Civil e apresenta a particularidade de associar normativamente a apreciação da má fé à decisão sobre a improcedência da suspeição: «quando julgar improcedente a suspeição, [o presidente] apreciará se o recusante procedeu de má fé». Deste modo, sendo indeferido o incidente de suspeição, está o presidente da relação obrigado a apreciar se o recusante procedeu de má fé.

Simplesmente, daqui não se segue que seja de excluir o interesse e a utilidade de audição do mesmo recusante. Com efeito, e de acordo com o sentido e alcance do princípio do contraditório, este deve poder pronunciar-se sobre os aspetos factuais e jurídicos de tal apreciação e, por essa via, concorrer para influenciar o resultado da apreciação e, se for o caso, a subsequente sanção. Inexiste, na verdade, qualquer especificidade no caso da norma ora sindicada que justifique a possibilidade de aplicar uma sanção em consequência de conduta processual tida por censurável sem que antes tenha sido assegurada ao respetivo destinatário a possibilidade de influenciar o sentido de tal decisão, deduzindo as suas razões.

Acresce que mesmo a celeridade e eficácia pretendidas pelo legislador na tramitação e solução do incidente de suspeição não permitem justificar a não audição do recusante. Com efeito, além de não estar em causa uma situação de urgência nem a audição implicar uma dilação desrazoável da decisão final, o sacrifício total do contraditório, não só pode comprometer a justiça da decisão por défice de informação designadamente ao nível da «análise ou trabalho de enquadramento» referido na decisão ora recorrida , como comprime intoleravelmente os direitos de defesa do recusante. De resto, e como também não deixou de ser realçado no mencionado Acórdão n.º 174/2018, a salvaguarda da possibilidade de influenciar o sentido da apreciação e da decisão quanto à má fé do recusante é tanto mais imperativa, quanto a lei não lhe reconhece a possibilidade de impugnar a decisão que sobre a má fé da sua conduta processual venha a ser tomada (cfr. o n.º 11; nos termos da primeira parte do n.º 3 do artigo 123.º do Código de Processo Civil, o presidente da relação decide sem recurso o incidente de  suspeição e a questão da má fé do recusante).

 

III. Decisão

Pelo exposto, decide-se:

a) Julgar inconstitucional, por violação do direito ao contraditório ínsito na garantia do processo equitativo prevista no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, a norma do artigo 123.º, n.º 3, do Código de Processo Civil segundo a qual a condenação por litigância de má fé e a multa aí previstas podem ser impostas à parte, sem que previamente lhe seja concedida a oportunidade de se pronunciar sobre tal sanção; e, em consequência,

b) Conceder provimento ao recurso e determinar a reformulação da decisão recorrida de acordo com o precedente juízo de inconstitucionalidade.

Sem custas.

 

 

 

Lisboa, 16 de janeiro de 2020 - Pedro Machete - Mariana Canotilho - Manuel da Costa Andrade